Marques da Silva
Todos temos consciência que, com o avançar da idade, o nosso corpo vai colapsando fisicamente, vai encerrando quartos ao longo de um corredor e a cada um desses apagamentos, a memória anula registos, aquela memória mais activa que possui um arquivo de acesso imediato. Naquela manhã, procurava interrogar aquele catálogo das coisas breves, sobre o que me teria levado até Salzburgo nos últimos dias e não conseguia obter uma resposta que compensasse essa tentativa de saber o que fazia ali. Num primeiro instante, ocorria-me a palavra, Mozart, o génio, a música, o seu precioso Requiem. Mas a resposta que encontrava não me satisfazia. A última lembrança dizia-me que tinha entrado na Áustria para satisfazer uma curiosidade, o que me levou até Innsbruck, mas de seguida tudo se nebulava. O centro histórico, os carros eléctricos, o rio, a cor das águas e as montanhas a norte ainda cobertas da neve que a Primavera não derretera por completo. Para além da perfeição, dessa beleza que assenta na ordem natural das coisas, escondendo a intervenção humana, sempre tão modificadora, tão correctora do que nasceu no seu lugar, não esquecia a palavra «flughafen» que o cérebro repetia a si próprio como algo que tivesse algum significado para além daquele que a palavra guardava. Esta era a auréola que a memória acolhera e de seguida apagara-se até este momento em que o comboio me leva em direcção a Viena, com nova pergunta, porquê Viena? Rodava a fita do tempo e tentava ver Salzburgo, o rio Salzach, as margens nessa curva lenta, como cansada, de novo a cor das águas, o verde queimado das cúpulas, Mozart por todo o lado, os picos montanhosos agora a Sul, mas sem essa pressão esmagadora que se sente no Tirol, e sempre esse apuro que procuro como virtude da vida e dos materiais, a beleza das formas. Aliás, a Áustria aparece-nos como um desenho longamente estudado e com os traços certos, sem nada mais para além do necessário, uma ilustração simbiótica entre a natureza e a humanidade. Há instantes que essa perfeição é tamanha que chega a tornar-se perturbadora e ao recordar as aldeias montanhosas do meu país, feitas desse granito milenário, formosas pela sua irregularidade, aparecem-me, comparativamente como um esboço, um rascunho de algo inacabado, e no entanto, sinto um cântico que se ergue das suas calçadas como um chamamento, como uma recordação de um passado de luta contra os elementos físicos da natureza e do poder. Nas margens do Salzach, não senti com tanta intensidade a expressividade do Requiem, como sinto este canto que se ergue do silêncio do casario de telha vermelha que se esvai no meu corpo ao longo destes anos em que procuro a verdade da vida, na verdade dos seres humanos quando submetidos à rudeza da existência e à maldade pérfida dos tiranos, quantas vezes silenciosos, nos seus crimes e nas angústias e dramas que deixam escondidas na alma dos serranos dessas aldeias que laboram e oram, acreditando nesses dois predicados como actos únicos de perfeição perante a eternidade. O comboio desloca-se a uma velocidade assombrosa numa sequência de túneis cujos intervalos deixam escasso tempo para contemplar a paisagem que se estende no exterior e vou assemelhando estes espaços intercalados ao evoluir da vida humana, a cada momento de alegria, de cores vivas, de satisfação, surge um espaço escuro, um tempo sem luz em que apenas seguimos em frente com a convicção de que haverá um momento para o qual o sol adquira novo brilho, novo esplendor luminoso e assim, vou percorrendo os tempos que somam a minha experiência, essa vivência que já é passado e não será futuro. Há sonhos que se transformam em pesadelos e marasmos que se transmutam em fantasias luxuriantes de felicidade. Creio que foi numa dessa saídas de túnel para um espaço aberto que a memória trouxe até mim, um dia de caminhada num percurso de rudeza sem limites que nos fazia descer do Nepal para Darjeeling. Quando atravessamos cordilheiras acima dos três mil metros, sentimos que há uma separação física entre a cabeça e o resto do corpo, como se cada uma dessas partes adquirisse autonomia. Sentia-me perturbadoramente cansado, por que esses dias se arrastavam sem ideia de quando encontraríamos traçado que nos dissesse que o destino estava próximo. Foi num desses momentos de grande fadiga, sentado na extremidade de uma espécie de falésia, na proximidade da aldeia de Kalipokhri, olhando para o que acreditava parecer ser a fronteira que, sem qualquer razão aparente, me ocorreu o nome de Diotima (1) e o seu diálogo à procura de respostas para perguntas que o seu desejo de felicidade faziam aparecer, e a sua resposta enigmática à questão que lhe colocavam, «Aqueles que nos abraçam nunca são os que amamos mais profundamente…». Iludia assim o dilema que vivia entre o amor legal e contractualizado e aquele outro que irrompera pela sua vida, com a torrente de um glaciar alpino desintegrando-se perante uma súbita rajada de calor. Iludia o essencial com a sua resposta, mas aceitava o diálogo filosófico sobre a vida, os valores, o amor e as morais que comprimem os desejos como as margens comprimem o rio. «Não existe felicidade desregrada. Não existe grande felicidade sem grandes tabus», dizia um Arnheim (1) já convicto da sua derrota, ou dito com palavras menos rudes, incapaz de atravessar essa fronteira do proibido, «as grandes almas precisam de legitimidade», acrescentava tentando convencer-se a si próprio e assim ficavam ambos a atravessar uma ponte elevatória cujo mecanismo encravara no momento em que deveria unir-se, deixando-os separados perante um espaço vazio e intransponível. Falavam como se justificassem o que não ousavam viver, e mesmo que, em espírito, Diotima já aceitasse, que seria «mais sensível e sensato o risco do adultério à catástrofe de duas vidas destruídas». Contudo, pedia-lhe silêncio, que não falasse, pois «as palavras podem fazer grandes coisas mas há outras maiores!," pois, acrescentava, «A autêntica verdade entre duas pessoas não pode ser dita» porque «Assim que falamos há portas que se fecham;» Arnheim concordava e do seu pensamento saiu a frase que dizia que «As almas unem-se quando os lábios se separam». Os tabus sociais, as regras invioláveis que os cercavam, obrigavam, mesmo sem o querer, Diotima a domar as águas revoltas do rio que a arrastavam, que a impulsionavam para os braços daquele amor que transportava no olhar e a faziam mover-se entre os fantasmas da realidade. Com Arnheim algo idêntico se passava, pese embora sentir-se na maior parte do tempo com vontade «de se precipitar, como um satélite desorbitado, na massa solar de Diotima». A fonteira aparecia junto à aldeia, subindo e descendo numa linha exígua perante a grandeza da montanha, e ao longe, como um ponto entre cores profundas aparecia a aldeia que procurávamos. O desenrolar do meu pensamento deteve-se no momento em que o comboio deslizou pelo interior da Wien Hauptbahnhof e deixei-me ir, de novo, sem rumo, com o silêncio das palavras que pedia Diotima.
(1) Personagens da obra literário, “O Homem sem Qualidades, de Robert Musil
Foi há 20 anos que a NATO realizou um dos seus maiores crimes na história da Europa recente. Durante 78 dias, bombardeou o que restava da Jugoslávia, deixando um rasto de mais de 2000 civis mortos e fazendo regredir, sobretudo a Sérvia, 50 anos em termos de infra-estruturas. Não hesitaram em bombardear a Televisão, para que a verdade dos seus crimes não aparecesse nos ecrãs do mundo. Na autoria do crime, estava gente democratíssima, como Javier Solana, o impagável Toni Blair, Bill Clinton ou António Guterres, todos bem recompensados no futuro. Quando a Jugoslávia se rendeu exangue e a sepultar os seus mortos, criaram o Estado fantoche do Kosovo, hoje placa giratória do tráfico humano e do negócio da droga e espaço de uma grande base militar da NATO. O presidente sérvio foi levado prisioneiro para Haia e morreu assassinado quando se encontrava à guarda do Tribunal Penal Internacional, assim se protegendo a democratíssima gente do que Slobodan Milosevic poderia vir a dizer.
A população dos EUA escolheu para presidente do país uma espécie de loucura humana, um míssil em voo que não se sabe onde vai cair. Esta demência rodeou-se de gente inqualificável. John Bolton é um desses seres que nasceu com o intestino grosso no cérebro e Elliott Abrams é dessa espécie de gente que num país decente estaria internado num hospital psiquiátrico em regime fechado. Há dias teve um diálogo delicioso sobre Juan Guaidó, o auto-proclamado presidente interino da Venezuela e que nessa qualidade estava obrigado a convocar eleições nos 30 dias imediatos. Confrontado com esse facto, Abrams disse que o tempo só começa a contar quando Maduro deixar o poder, o que só pode significar que o auto-proclamado presidente interino, só pode ser interino após Maduro deixar o poder, pelo que de momento, Juan Guaidó é apenas candidato a presidente interino! Creio que é muito compreensível a explicação do pro-cônsul de Trump. Digamos que o inefável Augusto Santos Silva tem estado a reconhecer como representante do poder venezuelano um candidato a presidente interino. Parece um atentado à inteligência, mas é só apenas esta gente a fazer de nós palhaços.
Em Madrid prossegue a farsa do julgamento de 13 presos políticos catalães. Para eles envio a minha solidariedade através da poesia de Manuel Alegre:
“Deixai-os pois dizer que vão vencer
Eles fogem da vida por temor da morte
Nós vamos para a morte por amor da vida
E enquanto Esparta só combate por dever
Nós iremos lutar com alegria
Por isso Atenas não será vencida”
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