Ondarroa, 31 de Janeiro
Subitamente atravessei o Estado espanhol de Sul para Norte até ao litoral do País Basco. Está de chuva, mas hoje ocorreu uma espécie de intervalo e a temperatura não é a de um Inverno rigoroso, mas o mar parece querer revoltar-se. Esta pequena vila fica a meio caminho entre Bilbau e Donostia. Passei por aqui quando visitei Guernika e procurava chegar a Hernâni. Surpreendido pela beleza do litoral, com as suas colinas verdejantes, os seus bosques, numa paisagem que mais parecia um desenho, deixei-me arrastar nessa velocidade que quase não necessita de aceleração. Desta vez foi Uribe quem me trouxe. Não o nauseabundo ex-presidente da Colômbia, mas antes Kirmen Uribe, escritor Basco que escreve em língua euskara. Em 2011 foi editado um dos seus livros, em português, com o título, Os Dois Amigos. O encanto da sua escrita impôs-me uma segunda leitura, mas só fazia sentido, se o voltasse a ler em Ondarroa, a sua terra natal e o lugar central do seu relato. O autor fala-nos de um romance que pretende escrever, percorrendo três gerações da sua família, enquanto viaja entre Bilbau e Nova Iorque, via Frankfurt. Só que ao falar-nos do seu avô dos seus pais e de si próprio, vai-nos levando em viagem pela história do século XX de Ondarroa e de certa forma do País Basco. A sua exposição calma, serena, coloca-nos no centro desta vila de pescadores, da pesca longínqua, das adversidades do mar, da coragem daqueles que, ao mesmo tempo que arriscando a vida nessa labuta marítima, não sabem viver fora do oceano. Dos seus avós, escolheu a figura de Libório, o mais controverso, pese embora ser pessoa afável, contador de estórias e bom amigo. A violenta guerra de 36 com os seus assassínios, as suas maldades e que levou os criminosos ao poder, encontra o avô Libório preso. Sabe-se lá porquê, assinou uma petição a favor da sedição da tropa fascista. Uma bomba da aviação dos insurrectos, libertou-o, mas a mancha ficou. Diz-nos ainda como sentiu a morte do pai já em idade adulta, esse pai que lhe contava estórias de quando a sua traineira viajava para as longínquas paragens a norte da Escócia, nesse mundo perdido de St. Kilda, uma ilha de 5 por 2,5 kms que esteve habitada até à década de 30 do século passado e cuja população para enviar o correio, construía barquinhos em madeira, onde introduziam a carta e um penny e lançavam-no ao mar com a indicação, «please, open». Dias depois, chegava a terra, no norte da Escócia ou à costa da Noruega. Por todos estes aspectos necessitava de uma nova leitura, mas para sentir de facto o pulsar desta literatura encantada, necessitava de pisar o mesmo chão dos personagens. É o que tenho feito nos últimos dias, passeio a solidão e a imaginação por entre as ruas estreitas de Ondarroa com o olhar procurando no horizonte aqueles que passam por nós e ficamos a amar. Euskal Herria é uma nação sofrida, carregada de dramas, tantos que a própria história tem dificuldade em transportar, mas Kirmen Uribe leva-nos numa viagem tranquila entre o chão e o mar, entre o perto e o longínquo, entre a sua família e as outras que a rodeavam, nessa solidariedade que vinha da vida marítima, mas também daquela que sobrevive à exclusão política e linguística. O seu livro acaba por parecer um compêndio de estórias, dessas que compõem a vida humana, das que nos permitem com o avançar dos anos olhar para o caminho percorrido e sentir o pulsar da nossa existência, ver onde estiveram os erros e os sorrisos. Há livros que pela sua ternura quase parecem um manual que nos ensina a amar. Ondarroa dá-nos essa sensação, de nos sentirmos bem no meio das adversidades, dos tremores de terra que aqui e ali nos sacodem o pensamento e nos fragilizam, nos deixam nesse limbo em que não vemos luz na estrada que seguimos, um cego a quem apagaram as velas que mostravam os limites do caminho. Há algo diferente no território dos bascos, um certo fascínio que não se vê, mas se sente. Talvez, uma linha entre o estrondo das bombas assassinas sobre Guernika e a beleza da literatura clara de Kirmen Uribe. Amanhã vai chover e deixo Ondarroa. Sigo para Nordeste.
Fernão Vasques*
* Por favor, não me confundam com o corajoso alfaiate que em 1371 ousou desafiar, em nome do povo, O Formoso e a futura rainha. Sou apenas um sonhador, digo eu, dos finais do século XX com endereço em Santa Maria das Júnias. São duas ruínas que se amparam, as minhas e as do mosteiro.
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