Azóia, 21 de Março de 1403
Estimado silêncio,
Envio esta carta desta aldeia afastada, desconhecendo quando o mensageiro a poderá entregar. Tantas vezes nos temos encontrado por aí, sem trocar uma palavra de saudação. Vejo-o, em diversas ocasiões, aqui pela povoação, percorrendo as ruas e invadindo as casas. Uma vez, ou outra, vem só, em outras ocasiões traz a solidão consigo, e ouço-os conversar, embora não compreenda as palavras que trocam, por silenciosas serem.
Talvez não me conheça, meu estimado silêncio, mas apresento-me para melhor entender a razão desta carta e poder um dia, quem sabe, dirigir-me uma palavrinha quando deambular aqui pelas ruas desta pequena aldeia, quase sobranceira ao mar.
O meu nome é Afonso Anes Penedo e fui tanoeiro em Lisboa, nas ruas do cais da Ribeira. Sabia do meu trabalho e os meus pares tinham grande consideração por mim. Era um mester respeitado enquanto vivi nas últimas décadas de Trezentos e o nosso trabalho era muito reclamado naqueles anos em que o comércio marítimo ganhava impulso, mas o reinado daquele D. Fernando e as suas guerras com Castela começaram a arruinar o país, ao mesmo tempo que os seus amores, nos entregavam nas mãos de D. João, o de Castela. Mas um dia, a morte deitou-o num caixão e levou-o de abalada, deixando o reino quase como um órfão.
Foi então, naquela sagrada manhã que os filhos segundos da nobreza e os bastardos empurraram o Mestre para cortar as asas ao Andeiro, nesse acto que foi o início do regenerar o sangue que circulava nas veias da nação. Álvaro Pais, correu a cidade gritando para que acudíssemos ao Mestre, prisioneiro no palácio, e nós fomos, aos magotes armados com o que tínhamos até que aquele que haveria de ser rei, assomou às janelas do paço e vimos que estava bem.
Este Afonso Anes que vos escreve ainda não tinha lugar na História, só nessa noite em S. Domingos, escrevi sem o desejar, as páginas a que Fernão Lopes deu ênfase, quando os burgueses da cidade com as suas hesitações iam pondo a perder aquela revolução que estava ainda no começo e com a mão na espada lhes fui dizendo de que lado preferiam morrer, e logo ali assinaram o seu apoio ao Mestre.
O que se seguiu depois, a História já contou, o cerco de Lisboa, a guerra com Castela e essa vitória assombrosa nos campos de Aljubarrota. Um país novo ressurgia das sombras da primeira dinastia. O Mestre, não esqueceria as promessas aos mesteirais, nem a minha palavra naquela noite, e quando fundou a Casa dos Vinte e Quatro, tornou-me seu presidente e nomeou-me Juiz do Povo.
Mas todos estes factos e acontecimentos, já o meu estimado silêncio conhece. O que venho aqui contar-lhe não ficou no registo da história porque não o contei a ninguém, apenas a minha alma conheceu esse segredo.
Foi na noite de S. Domingos, quando já todos dispersavam que a vi ao longe, quase a um canto, serena e com um desses sorrisos em que os lábios não chegam a descolar-se, enquanto o olhar, puro como as águas cristalinas da Primavera ao descerem das montanhas, olhavam-me como um chamamento. E fui, como sugado por aquele encanto de mulher. Deu-me a mão e levou-me como se toda a vida nos conhecêssemos. Assim percorremos as ruas de Lisboa, naqueles dias desvairados da revolução e do cerco. Quase não falava, exprimia-se pela ternura do sorriso e pela magia do olhar. Quantos dias e quantas noites nos levou o tempo, perdi-lhe a conta. Deixei de pensar, deixava-me ir. Era como se fosse uma parte da gesta revolucionária que então se vivia. Continuei tanoeiro, mas desde aquele seis de Dezembro, muitas coisas aconteceram na minha vida, mas o que mais recordo, é a sua presença, as suas chegadas silenciosas, o seu caminhar paralelo ao meu, no seu silêncio feiticeiro e sedutor.
Um dia, deixou de estar, partiu, com o mesmo silêncio que chegara. Partiu como um barco que deixa o cais, vagaroso, sem ruído, durante muito tempo ainda perceptível, para de seguida se dissolver na bruma do horizonte e não mais ser visível. Deixou-me esta recordação de dias inesquecíveis, no deslumbramento do inacreditável. Cumprida a minha obrigação para com a revolução e com a velhice a acenar-me, deixei a cidade e procurei refúgio nesta aldeia e nesta quase única casa de pedra. Da pequena janela voltada para oeste vejo o sol a tombar em magníficas explosões de avermelhadas cores e o estimado silêncio a emergir das águas oceânicas e a invadir a aldeia para essas conversas nocturnas com a solidão. Junto à porta, já deve ter reparado, cresce uma árvore florida. Foram as mãos daquele olhar que ma trouxeram e veio comigo de Lisboa e aqui resiste ao vento marítimo invernal. Naqueles dias tão vividos, falava-me de flores e ensinou-me os seus nomes. Esta é uma buganvília avermelhada e bela que com a chegada da Primavera floresce com esplendor. Um besteiro que veio para a guerra com Castela, disse-me que no Minho e no Douro, enchem as paredes pelo Verão fora. Não sei, que nunca cheguei tão longe, mas sei que o seu perfume cobre a minha alma isolada e só. À noite, quando o estimado silêncio chega, quando lhe sinto os passos, consigo escutar no seu caminhar, a música que ela me ensinou e deixou para sempre nos meus ouvidos. Essa música de graves e agudos, mas que nos embala entre sons cadenciados e com os quais consigo recordar a ternura daqueles dias em que acompanhava o meu viver na cidade, agora tão distante.
Pois aqui estou a escrever-lhe esta carta, desta aldeia para onde vim. Quando viajou, deixou-me o aroma dos jardins e os sons musicais com que embalo as tardes. O resto, a sua imagem, os sentimentos e os afectos que existiram, procura a memória nas planícies da minha alma.
Estimado silêncio, esta minha carta termina. Despeço-me e envio um abraço como esses que sentia com a sua chegada, com os braços a envolverem-me como a melodia de um canto longínquo.
Sempre ao dispor,
Afonso Anes Penedo.
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