António Mesquita
Na fábula que Francis Ford Coppola construiu sobre a América dos dias de hoje, assistimos a uma reinterpretação da história da Antiga Roma. Porém, não devemos esperar que Cícero ou Tito Lívio nos ensinem alguma coisa sobre o filme.
O homem que aparece aqui com uma visão de futuro, do lado certo, portanto, Lúcio Sérgio Catalina de seu nome, é um conspirador perigoso para Marco Túlio Cícero. "Até quando, ó Catilina, abusarás tu da nossa paciência?" é mesmo uma das mais famosas citações da oratória romana. Mas, a favor de Coppola, está o facto dos historiadores só terem a versão ciceroniana. Catilina poderia, talvez, ter evitado Augusto e o fim da república.
O domínio mundial da nação fundada por Eneias foi um dos mais longevos da história e o império que se seguiu ao assassinato de César e à derrocada das instituições republicanas foi o princípio do fim. O "império" americano está longe de poder sustentar essa comparação.
Digamos que para a figura da fábula isso é irrelevante. Dos sinais que parecem destinar a nação americana e o seu "império" a um rápido declínio, nenhum é tão importante como o fenómeno Trump. Aliás, o assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021 tem uma alusão clara no filme. E a identificação do homem do MAGA com a ideologia fascista é feita, dum modo rebarbativo com imagens de Hitler e de Mussolini. A expressão "que se mete pelos olhos dentro" podia aplicar-se, também, às liberdades formais do realizador, como o écrã tripartido, ou às incoerências da narrativa. Como um vinho velho, o filme de Coppola e a sua direcção podem apresentar sedimentos. Nada disso diminui o interesse de "Megalópolis". A sua dramaturgia revisita a cultura latina com um 'flair' que nos habituamos a esperar do autor de "Apocalypse Now".
A tecnologia, longe de ser diabolizada, aparece aqui associada às chances dum futuro possível, quase radioso, a julgar pelo final feliz da fábula. Catilina, no filme, é um arquitecto ambicioso e pretende fundar a nova cidade de Nova Iorque com um material revolucionário chamado Megalon, que lhe permite controlar o espaço e o tempo. Como estamos longe disso! E, no entanto, o que promete a Inteligência Articial não é menos revolucionário.
É curioso que uma das causas identificada, por exemplo, por Montesquieu, como na origem da decadência do império romano, a adulteração do moral do exército e da sociedade pela inclusão de outros povos (os bárbaros) na cidadania romana, esteja hoje no centro do turbilhão político americano e europeu, através do populismo e da extrema direita.
Em entrevista, Coppola disse: “Agora, a América é Roma e estamos prestes a passar pela mesma experiência, pelas mesmas razões que Roma perdeu a sua república e acabou com um imperador”.
Mas Roma deu lugar ao feudalismo e à Idade Média (das trevas, para alguns). FFC parece acreditar que a tecnologia nos pode livrar disso, associada ao poder nas mãos dum Catilina. Não é por acaso que esta encarnação moderna de Lúcio Sérgio é arquitecto. A sua visão para a Nova Roma era já a do romance de Any Rand, "Fountainhead", que também inspirou um filme, com Gary Cooper, em 1949, a King Vidor. A democracia, neste aglomerado de tecnologia e arquitectura utópica não estaria longe, talvez, de uma nova Idade Média, com os seus feudos e a sua descentralização. Não é Varoufakis que fala num novo feudalismo que já definiria o nosso mundo, em termos económicos?
Podia dizer-se que um filme tão desigual e que tanto divide a crítica é um parco resultado para os 120 milhões que dizem que Coppola investiu nele. Mas é um testamento que exprime a confusão dos tempos e não desonra o autor do "Apocalypse Now".
1 comentário:
E o filme KAZAN, passado na 3ª Roma, que decorreu só uma semana atras, viste?
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