Marques da Silva
Roma. Outono. Não estranhes se encontrares melancolia neste postal. Se tal acontecer é uma mistura de cansaço e tristeza pelos dias se extinguirem a meio da tarde, mesmo aqui tão próximo do Mediterrâneo. Percebi este sentimento contraditório ao atravessar a Piazza Navona e ao escutar as águas tombarem saltando pelo branco marmóreo da Fontana dei Quattro Fiumi. Trouxeram-me à memória o som constante que ouvimos nas Terras Altas da Escócia quando no fim da Primavera o aquecimento rebenta com o gelo que cobre as águas contidas e estas correm apressadas para o seu destino. Lembrei as palavras de Sophia a um dos seus filhos quando nesta praça deixava o tempo deslizar e aquele se impacientava, «tem calma, antes de vermos temos de observar». Fiz os possíveis por não me apressar. Queria que o olhar vadiasse sem tempo pelas ruas da antiga capital do império. Assim segui até à ponte de Vittorio Emanuele II, junto ao castelo de Sant’Angelo. Já antes ao atravessar a Piazza Venezia e admirar o Altar da Pátria me encontrara com este rei e a sua lembrança leva-me até Verdi. A rebeldia dos combatentes da liberdade por uma Itália unificada assumiu a grandeza da criatividade. Enquanto revivia os sons de Nabuco, dizia para mim mesma, quem diria, o grito da Itália no nome de Verdi (Vittorio Emanuele Rei D’Itália). Como corriam os austríacos imperiais apagando o nome de Verdi das paredes das ruas do Norte de Itália. Mal sabiam que se pode prender as pessoas, mas nunca o pensamento. A Via della Conziliazione conduz-nos em linha recta à Piazza de San Pietro. Entramos na Cidade do Vaticano onde não alcança o poder do Estado italiano. É um cerco sem fronteiras. Rodeamos a praça e entramos de olhar aberto na Basílica. Os olhos detêm-se por momentos na Pietà mas são impelidos, atraídos para cima. É nas paredes e nos tectos que se encontra a grandeza dos terrenos como oferenda aos céus, a Deus. Tudo é volume, exagero, as artes excedem-se na representação, mas quando alcançamos o cruzeiro e o olhar se prende nos transeptos e no interior da cúpula aparece um sentimento de fragilidade perante o poderio que nos esmaga. Alguém murmura ao meu lado, «aqui se compreende o poder da Igreja». De certa forma, a arquitectura parece austera e ao mesmo tempo, poderosa, esmagadora. A cúpula de Santa Maria del Fiore em Florença aparece-nos com magnitude semelhante, sem austeridade, mas mais simples, mais bela. Como a descreveu no domínio da intenção, o notário Ser Mino de Cantoribus, que "a indústria e o poder do homem não pudessem inventar ou mesmo tentar nada maior ou mais belo". Realçava, portanto, a arte, a beleza. Agia Sophia, nascera mil anos antes desta Basílica de São Pedro e também ela queria demonstrar a ostentação de poder, riqueza, domínio, mas demonstraram tudo isto pela beleza e a arte. Quando o Império do Oriente sobrevivia ao declínio do Ocidente, Agia Sophia erguia-se para provar que haveriam ainda mais de mil anos imperiais. Não sei se foi com essa intenção, mas em Agia Sophia, tudo é luz, tudo é arte, tudo é beleza. As cores são claras, vibrantes, apelativas e atraem a luz que penetra por todas as aberturas. Pode-se sentir essa máxima cristã de que Deus está em todo o lado. Cinco séculos depois as catedrais góticas vão tentar captar esta luz que jorra do céu, mas sem o mesmo esplendor. Agia Sophia é única e inimitável. Mas em S. Pedro, em pleno século XVI, o que se pretende é não deixar dúvidas sobre o poder, de Deus naturalmente segundo o poder cristão, mas na verdade, servindo o poder da terra. Pensar que mil anos antes, o Cristianismo caminhava nos tuneis do desaparecimento com a repressão imperial a decapitar a sua intelectualidade. E é Constantino após a vitória sobre Magêncio que tem uma decisão que altera e vai definir decisivamente o rumo da Cristandade. Com o Édito de 313 os cristãos passam a ser livres de professar a sua fé. No momento em que o império declina, o Cristianismo vai expandir-se. Constantino unifica o império pela última vez e nos arredores de Constantinopla, reúne o Concílio de Niceia, no qual estará presente e onde, perante a auréola que vê tentarem colocar-lhe, diz que não é Deus. No entanto, Eusébio de Cesareia, o primeiro historiador a escrever uma história global do ponto de vista cristão, dir-lhe-á, não és Deus, mas és imperador pela vontade de Deus. Não é porque que quer, mas porque Deus o exige. Será este Eusébio que estabelecerá uma relação entre o aparecimento de Deus a Constantino na véspera da batalha contra Magêncio que ditou a vitória e o entronizou como imperador, daí a mudança do seu comportamento em relação aos cristãos. Oitocentos anos mais tarde, os crúzios de Santa Cruz de Coimbra, vão construir uma história semelhante na invenção da batalha de Ourique em que Deus apareceu a D. Afonso Henriques para lhe dizer, vencerás e serás rei por minha vontade. O Império Romano tombaria definitivamente no século XV, mas a Igreja continuaria, pese embora, as crises que sempre atravessa. Deus é uma ideia interior enquanto os impérios não passam de um poder terreno de ganância, luxúria, desigualdade, infâmia, em suma, arrastam consigo uma cartilha de maldades. Desço pela Via del Penitenzieri e di Porta de Santo Spirito até ao Tibre. Sigo pela margem e sento-me nos jardins de Sant’Angelo ou como lhe chamam, Parco della Mole Adriana. É um lugar calmo, rareiam as gentes e deixo-me ficar a pensar no tempo que vivemos. Se aqui estivesses talvez te dissesse que por vezes a vida é um absurdo, pois sendo tão curta, não deixa de ser como os impérios e destes apenas fica na História o relato das maldades dos que mandaram e pareceram um dia deuses na terra, mas na verdade nunca passaram de um grão de areia nesse mundo de milhões e milhões que viveram antes deles e de outros milhões e milhões que viverão depois deles. Neste tempo que vivemos, outro império se desmorona com ruído e como todos os que o antecederam, vai deixando um rasto de destruição e sangue. Haverá sempre quem não desista de os combater como os heroicos árabes que na Palestina e no Líbano me fazem lembrar os imortais de Dario. Declina a tarde com melancolia, mas ao contrário dos impérios, quando morrem, na vida, novo dia há-de renascer. O postal segue no próximo correio.
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