Mário Martins
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“Nunca amamos alguém. Amamos tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.”
Bernardo Soares/Fernando Pessoa
Livro do Desassossego
Utilizo deliberadamente a grafia usada na época para designar o nome da única “namorada” de Fernando Pessoa porque - malhas que a mobilidade ortográfica tece - tal como os opositores de hoje ao acordo ortográfico de 1990, o poeta se manifestou contra o formulário ortográfico da língua portuguesa introduzido por decreto em 1911, já que o mesmo despojava o português escrito do seu “manto régio greco-latino”.
Apesar de Pessoa ter sucumbido aos olhares de Ophelia, nunca assumiu, publicamente e para si próprio, que a “Bebé, Bebezinho, Nininha ou Vespa”, como a tratava, fosse a sua namorada. A relação amorosa, a que o poeta viria a pôr termo um escasso ano depois, não passara de umas viagens de eléctrico e de uns beijos loucos do “Fernandinho ou Nininho”, no relato, muitos anos mais tarde, de Ophelia. Esta estava apaixonada por Fernando, queria casar e constituir família com ele, mas este não queria ter na vida qualquer compromisso:
“Pertencer – eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre.” (Livro do Desassossego).
Por isso, lhe aparecia algumas vezes como Álvaro de Campos, que ela odiava e achava maluco, “portando-se de uma maneira totalmente diferente e a dizer coisas sem nexo”, na descrição de Ophelia. Esta, que viria a casar três anos depois da morte de Pessoa, nunca deixou de se sentir apaixonada por Fernando e de o esperar, o que viria a acontecer, de modo ainda mais fugaz, dez anos depois do fim da primeira relação.
No ano da “morte”, não de Ricardo Reis, que lhe “sobreviveu”, mas do seu criador Fernando Pessoa, que viria a falecer em 30 de Novembro de 1935, operou-se uma reviravolta no pensamento e atitude do poeta e escritor, especialmente em termos políticos e sociais.
De posições, no passado, de aceitação de uma ditadura transitória que pusesse cobro à instabilidade da Primeira República; de compreensão da existência de classes sociais e até de complacência perante a escravatura:
“Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda” (Caeiro/Pessoa).
de aversão, ele que era um feroz individualista, a toda a sorte de grupos sociais:
“Falaram-me em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.”
(Caeiro/Pessoa)
passou a criticar acerbamente Salazar, sobretudo pelo cerceamento da liberdade individual que prezava acima de tudo, renegando o folheto que escrevera no passado sob o título “O Interregno – Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal”, e expondo, mesmo, o ditador ao ridículo:
Em Novembro de 1934, Salazar fez publicar a Carta Orgânica do Império Colonial Português, “que sustentava um controlo mais rígido e centralizado por parte do Estado Novo sobre as oito colónias de Portugal”, ao que Pessoa “respondeu” com uma “Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio” (aquele pequeno banco de areia com um farol localizado na barra do Tejo), em que o primeiro dos diversos artigos da carta afirma que as leis do Bugio serão o exacto oposto das do continente. Naturalmente que tal carta não foi publicada porque não passaria no crivo da Censura, mas também, como era típico em Pessoa, porque tantas cartas que escrevera a diversos destinatários ao longo da sua vida acabavam no baú, onde repousavam os mais diversos e fragmentados trabalhos poéticos e literários.
A criação nesse ano da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, conforme o modelo de idênticas organizações da Itália fascista e da Alemanha nazi, mereceria um curto poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa em que se fazia uma
“Saudação a todos quantos querem ser felizes: Saúde e estupidez!”
Na cerimónia de atribuição dos prémios literários do Secretariado da Propaganda Nacional, a que Pessoa concorrera com o único livro da sua poesia portuguesa publicado em vida, Mensagem, à qual não compareceu, Salazar proferiu um discurso em que defendeu, como é próprio das ditaduras, que as obras dos escritores deviam não só observar “certas limitações, mas também algumas directrizes definidas pelos princípios morais e patrióticos do Estado Novo.”, justificando a Censura. E citou Séneca: “Em estantes altas até ao tecto, adornam o aposento do preguiçoso todos os arrazoados e crónicas.” Pessoa, considerando estas declarações um ataque aos escritores, “responde” ironicamente com o poema “Liberdade”:
Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura
Sem literatura.
(…)
O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…
A mudança drástica do seu pensamento transparece na máxima “Tudo pelo Indivíduo, nada contra a Sociedade; tudo pela Humanidade, nada contra a Nação; tudo pela Igualdade, nada contra a Liberdade.”, que sucederia a “Tudo pela Humanidade, nada contra a Nação” que opôs à de Salazar e do seu Estado Novo: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação.”
Concluiria a sua vida com uma autodefinição:
“Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças. O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo.”
Uma nota final: esta notável biografia, da autoria de Richard Zenith, tendo sido publicada originalmente em inglês, parece-me ter merecido de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes, uma tradução para português ao nível da obra biográfica.
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