Marques da Silva
Florença, Junho. Envio-te novo postal. Desci pela costa, vagarosa e de olhar perdido. Não queria ficar e não tinha pressa de chegar. Deixei-me ir pelos dias de sol que me foram recebendo. Havia em mim uma mistura de ansiedade, de surpresa, de receio, como naqueles momentos em que nos preparamos para conhecer alguém e tememos que a realidade não corresponda à imagem que construímos antecipadamente, em alguns casos, como agora, há muito tempo enriquecida pela imaginação. Em Ravena dirigi-me para o interior, embrenhando-me na Emília-Romagna e na Toscânia. Entrei lentamente, como se levasse os olhos fechados e tivesse medo de não encontrar o que procurava. Abri-os quando me sentei num dos recantos do Giardino Bardini. Alheei-me do que me rodeava e, por fim, deixei que o olhar se abrisse para o horizonte que se estendia como uma planície. Estava tudo na minha frente e era real, até a tonalidade que cobria as pedras, os telhados, as paredes, as folhas, as árvores, apareciam como nas pinturas que tanto contemplara em madrugadas de sonho. O Arno, a Ponte Vecchio, a Campanile di Giotto e a extraordinária cúpula de Brunelleschi em Santa Maria del Fiore, a Torre de la Signoria, a Basílica de Santa Croce. A imaginação arrasta-me em viagem, desfolha-me os pensamentos, navega pela História, pelo tempo pretérito, pela soma dos dias que permitiram que os meus olhos pudessem agora apreciar a beleza construída em cima de séculos que, parecendo idílicos, guardaram poderes malignos, avarezas insuportáveis e misérias humanas sem limite. Mas ao mesmo tempo que o presente nos traz o belo secular, permite que nos rebente sobre o pensamento a violência modernizada, arrasadora nas suas explosões, ainda mais intolerável nos seus crimes. É o declinar de um mundo colonial que espoliou os povos ao longo de cinco séculos. A humanidade que constrói lugares e espaços que nos permitem o êxtase perante a magnitude do seu esforço, não impede que nos seus actos mais pérfidos seja capaz de reduzir a escombros, sejam monumentais obras de arte ou simples habitações de viver e, ontem como hoje, servindo-se de um Deus como protecção justificativa de tamanhas maldades e alguns desses criminosos são recebidos como pequenos deuses em areópagos mundiais debaixo de salvas de palmas daqueles que lhes encheram as mãos de pedras para as soltarem em gritos de selvajaria e de infâmia. Regresso a este jardim de encantado verde vigiando Florença e início a descida para me aproximar dos espaços que os olhos há tanto tempo imaginaram e construíram em sonhos, mas agora sem o temor de poder não encontrar o que tanto desejei. Caminho com essas demoras de quem não tem destino nem horário. Na Piazza di Santa Maria Soprano aproximo-me do Arno e deixo-me enlevar pelas águas que se movem ainda mais lentas do que o ritmo dos meus passos. Paro na entrada da Ponte Vecchio e não consigo esconder o sorriso que me enche a alma, pelo fascínio deste lugar tão ansiado e tão intensamente concebido. É como desembrulhar um presente que nos trazem, não sabemos o que é, mas apressamo-nos em descobrir desejando que seja algo que muito gostamos, mas sem sequer sabermos o que verdadeiramente queremos que seja. Percorro a Piazzale degli Uffizi com a solenidade de quem presta uma homenagem ao passado e à humanidade. Lembro-me do poema a Galileu e como o recitávamos juntos naquela parte em que o Mestre dizia a tudo que sim, que sim senhor, que era como suas eminências diziam, “Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. (…) que o sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.” E no final ríamo-nos, não do pensamento humano da época, mas das resistências que a ciência tem sempre de ultrapassar e vencer. Entro na Piazza della Signoria e sento-me nas breves escadas frente ao Palácio Vecchio. Espanto-me no volume da sua grandeza, da sua imponência. A sua torre soberba em pedra trabalhada com a sua varanda extravasando os limites das paredes, erguia-se já acima da Campanile di Giotto e igualava a cúpula de Brunelleschi. Era o desafio do poder profano sobre o religioso. Ainda não o ultrapassava, mas a posição que assumia já não permitia dúvidas. O poder económico das famílias burguesas e mercantis de Firenze reclamavam o que consideravam seu como de direito. Sabes como gosto de viajar sozinha, mas nestes lugares, nestes momentos, nestes espaços de reflexão como este onde me encontro na Piazza della Signoria, procuro-te como conforto, como amparo desta fragilidade que sinto na imensidão deste poderio que os olhos vêem e a alma sente. Caminho já no dealbar da tarde até à Piazza de San Giovanni. Santa Maria del Fiore está encerrada, o Battistério de San Giovanni também. Detenho o olhar na Porta del Paradiso e permito que as ideias fluam como uma barca num rio de águas calmas. Uma música lenta e um canto triste chegam no rumor de um crepúsculo que se aproxima. Sinto-me como se ainda fosse possível ver os Médicis entrar em Santa Maria para se despedirem de um dos seus cuja vida terminou num assassínio mortífero. Ontem como hoje eram as lutas perversas por um poder onde sobrava a ganância e a inveja e tanto carecia de justiça e de igualdade. As luzes acendem-se e fazem brilhar o lajedo das ruas de Florença. O dia partiu e a noite chegou. O postal segue em breve.
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