António Mesquita
John Carpenter, em "Escape from New York" (1981), mostra-nos a ilha de Manhattan, cercada de altos muros, convertida em prisão federal. Snake Plitssken (Kurt Russell), um famoso condenado, sob promessa da sua libertação é aí introduzido para tentar libertar o presidente dos States (Donald Pleasance), cujo avião teve de aterrar na ilha de emergência. Manhattan está entregue à sua própria desordem. E a caracterização da antiga metrópole da estátua da liberdade e das ainda de pé Torres Gémeas é um símbolo dessa desordem. As cenas do filme são quase sempre nocturnas e apenas percebemos os edifícios mais conhecidos, de perfil, por assim dizer. Os interiores em que se movimentam as personagens são degradados em extremo e deprimentes. As paredes estão todas cobertas de graffiti e dum emaranhado de riscos sem sentido. O cineasta considera na sua distopia sobre a sociedade americana a pichagem integral como senha do anti-social e da condição infernal dos párias e "excomungados". Lembra o bairro do Bronx duns anos antes, com a droga e o hip-hop.
A pichagem é, com certeza, uma prática tão antiga como os muros de Pompeia. Não raro, serviu de expressão a injustiçados, dissidentes e não-conformistas. A acusação de vandalismo não pode ignorar esse passado. Contudo, deveria ser possível distinguir a infecção da mensagem. Alguns dirão que o risco, só por si, ao desafiar a lei e a ideia urbanística prevalecente, é já uma mensagem. Como o assassínio e o fogo posto, crimes maiores. O que é que não fala em tudo o que fazemos?
Viemos dum verão em que não faltaram incêndios assustadores. E haverá quem compreenda o incendiário, sob o efeito do álcool ou duma ideologia primária, como alguém que quer ser ouvido e que recorre à violência das chamas para chamar a atenção ou declarar a sua revolta pessoal.
O Expresso de 12 do mês passado publicou um artigo de Joana Pereira Bastos sobre o tema, relatando o carácter mais sofisticado e militante de algumas pichagens, prática que terá tido origem no Brasil, o pixo:
"Com uma caligrafia inspirada no tipo de letra usado por bandas de heavy metal como Iron Maiden, criaram uma linguagem fechada que cobriu de spray milhares de edifícios e outras estruturas em São Paulo. Visto pela população como puro vandalismo, desprovido de valor artístico ou comunicativo, o movimento rapidamente se estendeu a várias regiões do Brasil e, mais tarde, a outros países. Em Portugal, tem vindo a espalhar-se nos últimos anos, sobretudo na Área Metropolitana de Lisboa, onde é visível nas paredes de inúmeros prédios, muitos devolutos mas também habitados, normalmente no cimo da fachada, a vários metros de altura."
Os habitantes de duas torres de apartamentos nos Olivais, por exemplo, acordaram com as paredes dos seus dez andares cobertos de traços pretos que não têm outro significado, senão revelarem a proeza que foi para os "artistas" escalaram a parede para pintar, andar a andar, sem serem notados, durante a madrugada. O que é novo aqui é a feição disciplinada e organizada do que não pode deixar de ser considerado um acto de barbarismo.
O Estado não pune, mas, pelos vistos sabe, porque a prática escreve a sua gesta nas redes sociais. E o município paga dois milhões por ano, sem poder reparar senão alguns raros casos.
A evidente ambiguidade do estatuto desta prática entre a arte e a borradela, entre o impulso anti-social e o gesto político tem, porém, os dias contados. Não que os cidadãos tenham superado essa indistinção ou tenham passado a desmentir a afirmação de Nietszche:
"Este viajante, que tinha visto muitos países e povos, e visitado várias partes do mundo, e a quem perguntavam qual era o carácter geral que tinha encontrado em todos os homens, respondia que era a sua inclinação para a preguiça.", mas porque a tecnologia vai permitir aos Estados passar além das hesitações e dos estados de alma em nome do bem de todos. Tão facilmente como colocar semáforos e aplicar as regras de trânsito. E eis como me vejo quase a subscrever a vigilância chinesa em nome da ordem urbana, só porque Carpenter carregou nas tintas.
No premiado filme "Grand Tour" (2024) de Miguel Gomes que é uma espécie de "Peregrinação" com outro Mendes Minto, alguém diz uma coisa que sempre se disse, mas que, com a Internet e o Global passou de moda. Disse que o homem ocidental não podia compreender o oriental. Talvez o marxismo capitalista dos Chineses caia sobre essa rubrica do desentendimento e a super-vigilância esteja só a apontar um caminho desconhecido.
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