Marques da Silva
Lago di Landro, mês de Maio. Escrevemos postais quando estamos em viagem. Não, não tem de ser um lugar longínquo, afastado, pode ser bem perto porque escrevemo-los como registo de um local, de um instante, do que vimos, ou mesmo por nos lembrarmos de alguém que a memória aproximou de nós. Após o averbamento da escrita guardamos esses postais para os ler em oportunidade posterior, lembrando o que vimos e como transcrevemos em relato a realidade vivida ou mesmo fantasiada e só quando o tempo solidificou a mensagem, chega a ocasião do envio. Não estranhes pois, o tempo que mediou entre o escrever e o remeter. A manhã ia já longa quando a paisagem que surgiu no nosso horizonte nos fez reter os passos e deixar verter em palavras escritas um certo êxtase de serenidade, mas o que nos envolveu nesses minutos ficará para mais tarde para quando se perceber como ali chegamos e que destino levávamos. Há países cujas linhas de fronteira fazem nascer desenhos interessantes. Este que atravessamos por estes dias é como se apresentasse a forma de uma garrafa, estreito num dos lados e um bojo na outra extremidade. Entramos pelo gargalo, uma reduzida faixa de terreno suficiente para a estrada, o rio, o comboio e alguns campos apertados de verde. De ambos os lados como margens opressoras uma colmeia de montanhas, cujos cimos aparecem como sentinelas vigilantes. A neve ainda derretia pelas encostas, deixando aberturas de tons castanhos e cinzentos até encontrar as árvores e tudo o que se esverdeia no declinar da primavera. São dezenas de quilómetros em que os tons e a quietude da natureza nos envolvem de forma apaziguadora. Enquanto viajamos e vemos as entradas abruptas para aquelas encostas descendo de alturas épicas, deixamos a imaginação flutuar em epopeias de pureza e devaneio. Num final de tarde, alcançamos a cidade que procurávamos conhecer. Sentados num prado verde protegidos por uma sucessão de granito elevando-se aos dois mil metros, deixamo-nos levar por esses instantes de vazio e silenciosa quietude. Um pouco abaixo corre o Inn com as suas águas ainda volumosas do degelo e aquela tonalidade arrebatadora que encontramos nos lagos de montanha e não chegamos a perceber como a natureza consegue aquela mistura de verde e azul tão sedutora ao olhar. O Inn nasce para os lados de St. Moritz e quando atravessa Innsbruck traz já uns largos quilómetros de viagem, mas muitos outros vai ainda percorrer até alcançar o Danúbio na cidade de Passau. Ambos descem até Viena, após passarem por Linz. E naquela calmaria em que estamos o nome de Linz traz-nos à memória os campos da infâmia que um tresloucado naquela cidade nascido fez brotar no centro da Europa há oitenta anos atrás. Será que os nazis terão alguma vez imaginado que alguns dos sobreviventes das suas monstruosidades seriam capazes de superar os seus algozes? E nós que acreditamos que o que vimos ou soubemos ter acontecido naquele passado tinha sido o ponto mais negro da humanidade, percebemos atónitos que é sempre possível descer ainda mais nas profundezas da maldade e da volúpia do crime! É cada vez mais insuportável acreditar nesta verdade que se desenrola perante o nosso presente.
Acompanhamos em imaginação o Danúbio até à austera capital imperial e ocorre-nos lembrar que lemos ou escutamos um pensamento que atribuem a Freud, “ver as pessoas como elas são e não como queremos que elas sejam. Vê-las à luz do dia e continuar a amá-las. É isso que distingue o verdadeiro amigo”. Mesmo que não seja de Freud, cativa-nos esta ideia neste anfiteatro de beleza natural que nos acolhe. Antes do entardecer percorremos as ruas estreitas do centro da cidade acolhidos por uma chuva melancólica enquanto na margem esquerda do Inn contemplamos as fachadas dos prédios na margem oposta que nos faz lembrar a cidade dos Buddenbrook de Thomas Mann. A cor ocre das fachadas e nas traseiras as montanhas altivas cobertas de neve. Atravessamos o Inn ao amanhecer e rumamos a sul por caminhos sinuosos e molhados. Em Brenner acolhe-nos um Café com um ambiente que nos impele à rebeldia de um descanso sem tempo. É desses lugares repousantes que nos trazem recordações passadas, sobretudo numa manhã primaveril de chuva intermitente. Sentimos o aquecimento da vida humana e apetece-nos respirar esse sabor como um anestésico salutar. Prosseguimos abraçados pela extensa cortina alpina, esta sucessão de cumes que disputam entre si o elevar nas alturas. Desistimos de Bolzano nesta Itália que fala alemão e prosseguimos pela estrada que se dirige para o bojo da garrafa, mas antes de lá chegarmos rumamos de novo a sul em direcção a Cortina d’Ampezo. O caminho parece agora mais suave, permite que interiorizemos o emudecimento que nos envolve, deixamo-nos conduzir alheando-nos do que possa surgir como estranho. É neste cenário que quando o horizonte desliza numa curva para a direita surge o Lago di Landro, uma bacia de água formada pela corrente do Rio Rienz. É uma abertura no caudal de montanhas que nos rodeiam. Quando nos deixamos cativar por determinados momentos que a grandeza da natureza gera, as palavras são insuficientes para descrever as emoções e os sentimentos que se evaporam. São instantes raros que podemos viver. Que poderíamos escrever? A mudez altiva das montanhas, a neve que as cobriam como um lençol, uma mansidão que impedia os movimentos, a sensação de imobilidade que nos é imposta. A tentativa de escrever surge como uma necessidade para impedir o esquecimento ou para nos ajudar a recriar o momento vivido quando as agruras da vida nos surpreendem no caminho. Ao deixarmos a magia daquele local, a viagem apareceu-nos mais fácil, a chuva da manhã diluiu-se num sol nublado e na alegria da descida na companhia do Rio Piave lembramo-nos da Baladilla de los tres ríos de Garcia Lorca, “El rio Guadalquivir va entre naranjos y olivos, los dos rios de Granada bajan de la nieve al trigo”. O postal segue mais tarde.
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