Mário Martins
Como éramos na “noite dos tempos”?
Eis uma questão que nos põe, pela via científica, em sintonia com os nossos antepassados mais longínquos e, à semelhança do ponto de vista dos astronautas, nos eleva acima das paixões e desvario humanos.
Foquemo-nos no mais célebre: Lucy, um Australopithecus afarensis, um símio do Sul com a venerável idade de 3,3 milhões de anos.
O seu esqueleto fóssil incompleto (cerca de 40% do total), foi descoberto na região de Afar, na Etiópia, em 1974, pelo paleoantropólago Donald Johanson e pelo seu estudante à época, Tom Gray.
É sabido que o acaso desempenha um papel às vezes decisivo na investigação científica. A descoberta da penicilina, em 1928, é um claro exemplo disso.
Alexander Fleming, com a sua grande capacidade de observação, que compensava um deficiente sentido de arrumação, reparou que numa cultura bacteriológica antiga havia crescido um fungo (Penicillium notatum), o vulgar bolor, que eliminara a bactéria (Staphylococcus aureus). Com o seu treino científico, Fleming tirou daí as devidas consequências. Já antes, em 1921, notara que o seu muco nasal proveniente de um espirro, que caíra alguns dias antes numa placa onde cresciam colónias bacterianas, destruíra as bactérias. Descobrira, assim, a lisozima, uma proteína que se encontra nas lágrimas e no muco humanos.
Voltando ao ambiente africano, “no caminho de regresso no Land Rover de mais um dia de trabalho de campo, para evitar um troço em pleno sol, Johanson e Gray desviaram-se para uma zona por onde nunca tinham passado. Johanson, que tinha como sempre os olhos no chão, pois é assim que se encontram os fósseis, viu a despontar do solo um cotovelo perfeitamente conservado, e agarrado a ele um dos dois ossos do antebraço. Johanson percebeu de imediato que era um osso diferente – um osso de hominóide, uma subfamília hominídea que nos inclui a nós, o género Homo”
A designação científica do fóssil é AL 288-1, mas o nome Lucy, pelo qual é mundialmente conhecido, surgiu porque enquanto recompunha o esqueleto, Johanson ouvia a canção dos Beatles que mais lhe agradava: Lucy in the sky with diamonds…
Mas, sendo um símio, por que razão os especialistas o consideram tão importante?
Andrew Hill, um membro do grupo de paleontólogos dirigido por Mary Leakey, em Laetoli, na Tanzânia, próximo de um vulcão, “foi alvejado com bolas de esterco de elefante pelos companheiros (parece que por aqueles lados os passatempos não são muitos e entretêm-se com o que está â mão). Para se esquivar ao esterco, Hill atirou-se para o chão, dando-se conta, tal como se pensava, que não existem apenas marcas de antílopes e gazelas: uma marca no meio delas parecia ter sido deixada por um pé humano nas cinzas do vulcão. Em 1978, após quatro anos de trabalho, é trazido à luz um troço de cinzas solidificadas há 3,6 milhões de anos, nas quais ficaram impressas oitenta e oito pegadas de criaturas que, sem dúvida, caminhavam sobre duas pernas. Quem as deixara tinha o dedo grande do pé paralelo aos outros dedos, e não divergente como os macacos”.
A única criatura que naquele tempo e naquele lugar pode ter caminhado sobre estas cinzas é, precisamente, o Australopithecus afarensis, conclui Barbujani.
Lucy tornou-se uma celebridade porque andava sobre dois pés.
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