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01/09/24

CERVEJARIA

António Mesquita


"Pelas amizades que não querem ser outra coisa." 
(Outdoor da Superbock)


A publicidade entra noutros domínios, está bom de ver. Já Stuart Jeffries (*) assinalava o caso da BMW que para  vender o carro,  apelava a uma psicologia mais complexa. Não ao amante da técnica alemã, nem ao "standing" da viatura, mas, talvez,  a um sentimento libertário de estar acima das compulsões normais e da estratégia comercial do capitalismo, mesmo se à custa duma  certa dose de cinismo. 

Leia-se o que escreve  sobre Jenny Holzer, uma antiga artista de rua, cujos slogans e graffiti desposavam o "espírito do tempo",  que conseguiu ganhar credibilidade  ao ponto de ser contratada por uma das grandes marcas germânicas: 

"Em 1999, tornou-se o décimo quinto artista indigitado para o "BMW Art Car Project". Ela escreveu  na chapa de  metal   "Protect me from what I want" e sublinhou o slogan com tinta fosforecente num BMW que estava destinado às "24 horas de Le Mans" desse ano.  Acrescentou outros slogans nos "sidepods" do carro:  "You are so complex, you don’t respond to danger" e "The unattainable is invariably attractive". Na traseira do carro lia-se:  "Lack of charisma can be fatal"  e "Monomania is a prerequisite of success". "Holzer estava talvez a desconstruir a auto-imagem dos jovens pilotos no momento em que estes enfiavam o capacete."

O anúncio da Superbock dirige-se a quem, fala de quê e com que intuito?

A psicanálise passou por aqui. A "desconstrução", no sentido que lhe deu Jacques Derrida, também. A mensagem podia ler-se como homofóbica e puritana na acepção das ligas anti-alcoólicas ( o que seria o cúmulo da hipocrisia, ao tentar com a bebida para acenar, ao mesmo tempo, com uma virtuosa moderação).

Mas continuemos na amizade. No final de "Casablanca", Bogart, o cínico de coração bem arrumado, diz para Claude Rains o oficial de Vichy, que não o tem pior arrumado: " Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship." E os dois vultos perdem-se no nevoeiro do aeroporto, ao mesmo tempo que se ouvem os acordes do hino patriótico da Resistência. 

Esta outra amizade, no filme de Michael Curtiz, quer ser outra coisa do que parece? Eu diria que a circunstância e sobretudo a música elevam aquele acordo de conveniência (o polícia arranja-lhe a carta de trânsito para sair de Marrocos e Rick perdoa-lhe a dívida da aposta perdida de 10 mil francos, por conta das despesas de "ambos") a um estatuto emblemático. Cinismo das duas personagens que chega a parecer modéstia e sobriedade.

Mas, no fim de contas, o que pode significar esta incursão da publicidade comercial no domínio da cultura popular? Stuart Jeffries arrisca sugerir que, eventualmente, podemos todos já nos termos tornado pós-modernos.

Sim, isso mesmo. O termo ainda não chegou às telenovelas da televisão, mas figuras como o candidato à presidência dos EEUU pelo partido republicano já nos vêm preparando desde há muito tempo. O seu desembaraço em relação aos factos e à verdade é o sinal de que a cultura tradicional  e os seus valores deixaram de fundar o que quer que seja. A origem pode estar no fim perseguido e as hierarquias passaram a obedecer apenas à lógica do poder.

Lemmy  Caution (Eddie Constantine), em "Alphaville", o filme de Jean-Luc-Godard de 1965, trabalha para um jornal chamado  Figaro-Pravda e vem à metrópole que dá o nome ao único filme de ficção científica do realizador. Não se vêem as pessoas agarradas ao telemóvel, nem os carros nas ruas se parecem com os nossos. Mas o abismo em que se encontram as pessoas é expresso na conjunção dos dois nomes do jornal. O   computador Alpha 60 e o presidente Von Braun zelam pela ordem social como lógica estrita. Se fizesse o seu filme hoje, Godard escolheria provavelmente Xinhua-NYT para o nome do jornal.

A publicidade é omnipresente e por isso mesmo as audiências nem se dão conta de que a absorvem como o ar do tempo, um pouco como na China moderna, com a sua distopia de controlo  dos cidadãos. O que já funciona a um nível subliminar, sem que o consumidor se dê conta disso, pode muito bem esbater a diferença entre comércio e política. A manipulação do desejo leva àgua ao moinho do sistema.

O pós-moderno que foi teorizado com toda a sapiência sorbórnica de algumas luminárias do pensamento europeu, deu um nome a um fenómeno que se produziu espontâneamente e que é a consequência das crises e das gestações dos vários mundos e modos de vida a que poderíamos chamar história se ainda fosse um termo insuspeito.

Como sempre acontece, um novo nome, sem criar a coisa, fá-la aparecer entre as pessoas. Nos telejornais é cada vez mais frequente ouvir-se falar em "narrativa" em relação à versão da verdade de alguém e em "desconstruir" um argumento.

A ideia de que não há verdade, mas tão-só interpretações, faz o seu caminho inexoravelmente, dum modo que não surpreenderia Lemmy Caution. 

(*) Stuart Jeffries-"Everything, All the Time, Everywhere: How We Became Postmodern"



ATRAVÉS DA MÁSCARA
(Sobre o filme de Ingmar Bergman "Depois do ensaio", 1984)



Segundo nos diz Bénard da Costa nos seus magníficos "Escritos sobre cinema" (edição da Cinemateca, em 6 volumes), Ingmar Bergman não pretendia que "Depois  do ensaio" corresse nas salas. Foi concebido para a televisão e só depois de muita insistência, o produtor  Jörn Donner conseguiu que o autor aceitasse fazer uma  cópia em 35mm.

Para além da promessa de que "Fanny e Alexander " seria o seu último filme, talvez se perceba o real motivo do cineasta. O filme é uma espécie de rascunho genial sobre a actividade que, para além do cinema, preencheu a vida de Bergman: o teatro. Não há propriamente guião e o que vemos é o jogo expressivo de três actores, quase sempre em grandes planos, nos quais revelam os seus sentimentos e pensam em voz alta sobre o passado ou as relações mútuas. Erland Josephson, o encenador é como diz JBC o alter ego do realizador sueco. A jovem interlocutora (Lena Olin) que a certa altura aparece no corpo da adolescente ao tempo da tempestuosa relação de Josephson com a mãe, por sua  vez interpretada por uma Ingrid Thulin irreconhecível. 

O diálogo exprime-se  numa indecisa região entre a realidade e o que poderia ter sido. Não é por acaso que a peça que se ensaia é o "Sonho" de Strindberg. E a essência do teatro é esse jogo da palavra e do actor que a assume com a "terra de ninguém" que cada um de nós é, se nos despirmos da máscara (persona). Ela é o papel que quase involuntariamente e de modo as mais das vezes inconsciente, representamos connosco próprios e os outros. Por isso a relação com essa personagem, quando é consciente  é "despaisante" para empregar um galicismo. E Ingmar Bergman, como homem de teatro (amor fiel contraposto ao de amante que dedica ao cinema, nas suas palavras) experimentou nalguns períodos da sua vida a experiência desconcertante  de perder o seu papel e  viver sem máscara. Como uma não-pessoa. É preciso para entender isso rever outra obra-prima: "Persona". 

Mas de que máscara vem esse  dito com que termina o filme  sobre o receio de estar a ficar surdo? Como se o corpo que envelhece fosse o último papel.




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