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01/08/24

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Viajar é sempre uma aventura que nos conduz ao novo, mesmo que já conhecido, pois o tempo marca diferenças, enquanto a memória vai desvanecendo as imagens que os olhos guardaram. A natureza renova-se a cada instante – “Quem vai de viagem, escreve Jean Paul, é como o doente, está suspenso entre dois mundos”(1). -. Envolve-nos o trepidar das rodas nos segmentos dos carris, deixando-nos nesse limbo que nos traz esse embalo cadenciado, enquanto as paisagens desfilam da frente para a retaguarda. É uma sonolência agradável que nos leva para a serenidade que tanto ansiamos. Na saída do longo túnel aflora-nos o tempo distante da infância. O pequeno carreiro de terra ladeado pelas pedras encasteladas do pequeno muro e os altos troncos do milho que aguardava pela colheita, a corrida que permitia o olhar encantado das rodas vermelhas com o seu gigantismo movidas pelo esforço de bielas incansáveis, colocavam-nos, pequeno pigmeu, perante um adamastor colossal. A fonte onde a água incansável cantava noite e dia, a casa de pedra, o caminho coberto por uma latada verde e cerrada que protegia os caminhantes do sol abrasador. Hoje, tudo é breve, a composição passa célere, quase silenciosa, e sem esforço, leva-nos esse passado como uma brisa de vento que nem permite uma paragem recordatória. E quando ainda enevoados pela lembrança, à direita, vemos que se abre na paisagem uma janela de beleza ímpar, ao longo desta linha secular. As águas bordejando a montanha num lago imenso de quietude serena e melancólica. Os olhos viajam à velocidade do comboio, estendem-se até onde o horizonte permite alcançar. O cais na outra margem, sossegado no seu intemporal descanso e o pequeno lugar segurando-se na protecção da encosta. Há sempre um êxtase irrepetível nesta travessia que não se cansa de registar o que chega até ao olhar a cada instante. Quase de súbito, o rio abre-se de novo e dilata-se para ambos os lados dando relevo à aldeia que vive encostada nas suas margens. No lado oposto, o comboio envolve-se com a paisagem, confundem-se ambos quando desliza sobre a ponte desenhada em curva como suspensa sobre aquele mar interior. Deixamos a carruagem que nos trouxe e de costas para o rio, sentados contemplamos e sentimos a amenidade do sol que nos recebe e a ligeira brisa que afasta o calor. Acreditamos ver Jacinto, naquela noite distante e negra, envolvida pela nuvem de vapor que a locomotiva soprava para o ar, desembarcar surpreendido sem ainda saber o que a luz do dia lhe haveria de revelar. Sentados num pequeno talude, escutando o marulhar das águas entre as pedras, movidas por ondas invisíveis, recordamos o dia distante em que por aqui, também nós andamos. Não estávamos sós, mas quando tanto desejamos, chegamos a acreditar que tudo é nada, para além do que nos une – “erguem-se muros em volta, do corpo quando nos damos” – O comboio volta a levar-nos no remanso da tarde, até à ponte de arco rendilhado que se abre sobre o manto líquido do primeiro lago que nos surpreende ao chegarmos. Caminhamos levados pela nostalgia do tempo e deixamo-nos ficar no prazer imenso de uma serenidade que tanto desejamos e procuramos e gostaríamos que não terminasse. Deixamo-nos ficar por longos minutos. Na outra margem, as pequenas casas, o cais parecendo balouçar sobre o movimento das águas, a estrada curvando-se escondida na encosta. Estamos no usufruto deste sossego quando, como uma nuvem negra sobre um azul celeste, surge no pensamento como um tufão devastador, um pensamento sobre Gaza, a Palestina, os crimes infames e monstruosos de uma pandilha de doentes mentais que fazem ajoelhar a humanidade numa derrota infindável. Porto Antigo prossegue no nosso horizonte, na sua calma mansa tentando pacificar-nos a alma. Escutamos agora o ruído característico da velhinha 1400 azul a acelerar para num esforço inclinado nos mostrar a partir de um ponto mais alto o anfiteatro de beleza que ali continua a residir para em cada viagem podermos aquietar o pensamento rasgado pelas notícias do mundo onde um gangue sem freio semeia violência e ódio impune e desmedidamente. Com os braços apoiados no vidro da janela das renovadas Schindler, sentindo o sopro de ar quente sobre o rosto – “amor nos olhos, cabelo ao vento, gestos de prata de flor sem tempo” – resignamo-nos perante o momento de regresso, a despedida desse lugar tão singular na formosura recriada e aumentada pelo elevar artificial do caudal do rio. Estendemos ainda, por entre a vegetação, o olhar para o horizonte onde as águas se perdem e assalta-nos a memória as palavras plenas de nostalgia, dizendo, “rios que vão dar ao mar, deixem meus olhos secar”.       


  (1) - Cláudio Magris, em "Danúbio", editado por Biblioteca Sábado, 2009

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