"A frustração que sentimos face à incompletude cognitiva é o mais patente sintoma da nossa atracção pela narração. Não há situações enigmáticas para as quais o nosso espírito não procure encontrar soluções. A ficção é a vertente recreativa desta compulsão cognitiva para dar um sentido ao nosso ambiente."
(Gérald Bronner)
Um funeral levou-me a deambular na zona da Lapa. O ângulo insólito da igreja sempre me fez espécie. Parece um móvel que não está encostado à parede, mas oferece uma vetusta esquina. No caminho, porém, foi outra esquina que me deu o mote deste texto. Na rua do Monte da Lapa, que está em obras, ao levantar a cabeça, vi um azulejo piedoso. Reza assim: "Vós que ides passando lembrai-vos das almas dos que estão penando".
Nada de mais longe das nossas crenças de hoje. Mas Dante Alighieri, ainda no século XIII dedica um ciclo de poemas celebérrimo às voltas do Inferno e às almas penitentes. É uma ficção, sem dúvida, que foi substituída por outras ao longo do tempo. Porque, como diz Gérald Bronner, no seu " Apocalypse cognitive", "a ficção produz muitas vezes uma editorialização do mundo: como um tutor no caso duma planta, ela leva-nos a memorizar factos díspares organizando-os em torno dum eixo narrativo". A influência da narrativa nas nossas crenças não pode ser subestimada. Ao ponto de algumas invenções com que tantos se maravilham nos nossos dias terem sido inspiradas na ficção. É ainda o mesmo autor que lembra que a ideia do mais que consagrado telemóvel terá sido "soprada": a Martin Cooper, hoje um senhor com 95 anos, pela série "Star Trek".
Ora, a ficção está presente em tudo à nossa volta, dentro e fora das nossas cabeças. Como sabemos, a "Rede" é hoje mais "editorializante", para empregar a palavra de Bronner, do que Hollywood e todos os seus modernos avatares. No fundo, somos nós todos, os utilizadores, que somos o "tutor" da planta colectiva. Para o bem e para o mal, conforme quem se aproveita das histórias que nos contamos.. Muitos insistem na ideia dum 'complot' internacional, mas, a haver estratégia, ela é suicidária, como se vê na questão climática e na geopolítica.
A publicidade, quanto a ela, engole tudo como a gibóia. Até os poetas e os poetastros. Com o café, o pacotinho de açúcar duma marca italiana diz: "De mão em mão, a partilhar histórias com paixão." Os gigantes da tecnologia como a Meta e a Google ganham milhões com a publicidade direcionada. Mesmo se, graças ao 'zapping', o efeito que os anunciantes esperam dela seja muito sobrestimado. É o que move os políticos a frequentarem programas da televisão que só visam revelar os seus ridículos. Parece que, sem publicidade não há salvação e que a política não deve ter medo do ridículo se o problema está em quem se ri.
Também a China já foi ridícula aos olhos duma eminente personagem de "A Montanha Mágica" e agora caem os queixos de espanto com a capacidade do seu poder de adaptação e a voracidade do seu capitalismo 'sui generis'. Falando de Settembrini, a tal personagem, Thomas Mann escreve que ele "Não se intimidou quando Naphta lhe opôs a China, onde reinava a mais ridícula idolatria do abecedário que se conhecia, e onde uma pessoa chegava a ser generalíssimo quando sabia traçar com tinta nanquim todos os quarenta mil ideogramas, o que devia agradar muito ao coração de um humanista."
Para voltar ao tema, que é a mitologia, claro, não é preciso dizer que não acredito em almas penitentes nem em círculos infernais. Mas a narrativa católica ainda tem significado para a grande maioria que faz a lei e os costumes com que nos regemos. A missa de corpo presente que me levou à Lapa está uns círculos acima do mundo da publicidade e da ribalta polítiqueira, porque dá um sentido ao que, doutro modo, não teria sentido nenhum.
A versão autóctone das "almas penadas", as dos que voltam para pagar uma dívida, tem a sua origem, como se compreende, no medo da própria morte.
"Os irmãos mesários, bem como alguns devotos tomavam a seu cargo esta função de pedir, pois desejavam contribuir para salvar as Almas em sofrimento. Este envolvimento de todos estava também relacionado com o medo e o horror que tinham às Almas, uma vez que a crença na sua presença no mundo dos vivos era enorme. De dia, mas principalmente de noite, os fiéis acreditavam no seu aparecimento, infundindo muito medo." ("Resgatar almas do purgatório: os peditórios das confrarias das almas
da Braga barroca" de Maria Marta Lobo de Araújo)
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