Marques da Silva
«Pedes-me que te fale da beleza que os meus olhos encontraram pelos lugares do mundo?» Era a tua pergunta antes da resposta que pretendia. «Falar de beleza num tempo como o nosso que almejávamos sereno, de imensa tranquilidade de ausência de tempestades!?», acrescentaste com estupefacção, quase incredulidade perante o pedido que formulamos. «Li algures que ‘é importante falar dela – da beleza – e não a perder de vista porque sem beleza a vida não vale a pena’ (1) e questiono-me espantada como é possível acreditar na beleza nestes tempos que nos é permitido viver! Percorro na memória os espaços do mundo onde os meus olhos pararam tantas vezes em êxtase pela grandeza da natureza ou até pela obra da mão humana, mas diz-me, como posso falar da beleza que tantas vezes se me deparou quando tenho dia e noite dentro da cabeça o grito de quinze mil crianças assassinadas pelo exército desse hospital psiquiátrico a que chamam Estado de Israel? Diz-me, por favor, como posso pensar na beleza das pessoas e dos lugares quando o grito de vinte mil órfãos se juntam aos gritos anteriores e ainda os gritos das mulheres soterradas sob toneladas de bombas agarradas aos seus filhos para uma protecção que se revelou inútil? Como é possível viver com todos estes gritos a vibrar no interior da alma na incredulidade do que os nossos olhos vêem diariamente, dia e noite, vinte e quatro horas sobre outras vinte quatro e com o mundo pendente de um comando de dementes cuja loucura sobe em espiral descontrolada, vivendo dentro dessa alienação e acreditando que a saída é aumentarem a dose de psicopatia? Não me peças hoje para falar de beleza, aliás, não me peças palavras de espécie alguma, pois as palavras esgotaram-se e perderam sentido, pelo que este espaço onde poderia escrever tem de ser necessariamente um espaço em branco. Não um espaço de censura, mas de ausência, um buraco negro que tudo sugou e torna impossível descrever o que vemos e sentimos e já nem sequer sabemos se é possível deter a mão que dirige esta loucura assassina. Quando chegou à prisão siberiana, Dostoievski sentiu, como uma perda, que não conseguiria estar só, que não lhe seria possível ter um momento de solidão e silêncio. O ser humano é por natureza um ser social, mas neste tempo em que dominam os alienados mentais e em que a humanidade está a ser derrotada, percebemos essa sensação de perda que teve o escritor russo. Há momentos em que necessitamos profundamente de silêncio e solidão para não sermos arrastados por um qualquer amaleque para o inferno das trevas”.
(1) Martim Sousa Tavares em “Falar Piano e Tocar Francês”, Livros Zigurate, Maio de 2024.
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