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01/06/24

O 18 DE BRUMÁRIO

Mário Martins


https://www.fnac.pt/Napoleao-O-Homem-por-Tras-do-Mito-Adam-Zamoyski




Hegel observa numa das suas obras que “todos os factos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes.  Mas esqueceu-se de acrescentar: a primeira como tragédia, a segunda como farsa.”

“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”
Karl Marx


Trata-se aqui, no dizer de Marx, da tragédia ocorrida em 18 de Brumário (designação com origem na palavra bruma) do ano VIII do calendário revolucionário francês (9 de Novembro de 1799 no calendário gregoriano), que consistiu num golpe de estado fomentado por alguns dos membros do Directório que dirigia a França (após o derrube cinco anos antes da curta, mas célebre Comuna de Paris), ao qual foi chamado o general Napoleão Bonaparte, aureolado pelas suas façanhas militares. A farsa só ocorreria 52 anos depois, com o sobrinho de Napoleão, Luís Bonaparte. 

Se os homens não se medem aos palmos, Napoleão é um exemplo acabado desse aforismo, no sentido de se distinguir do homem comum. Não se pode dizer, com efeito, citando a conhecida frase do poeta maior nacional, que era “de estatura meã, mas não pequena”, porque Napoleão era, de facto, pequeno, além de magro e macilento enquanto jovem adulto, aspecto que, conjugado com os seus modos bruscos e desajeitados, servidos por uma voz áspera e um francês deficiente, causava má impressão. Se Napoleão era surpreendentemente pequeno, detinha, no entanto, uma personalidade forte que o seu olhar intimidante denunciava.

Fervoroso e activo adepto da independência da Córsega, de onde era natural, terra que lhe transmitira, antes de tudo, um arreigado sentido de protecção da família, fosse por que via fosse, num ambiente de trapaça e de tráfico de influências, (sentido que haveria de levar à prática no exercício do seu futuro poder absoluto), acabou a tomar partido pelo país ocupante, a França, opção que melhor servia a sua ambição. 

Vivia-se então um clima de guerra alucinante na Europa, em que os tratados de paz ou os armistícios eram assinados num dia e rasgados no dia seguinte, e em que as nações mais poderosas não se limitavam a proteger as suas fronteiras, almejando sobretudo o domínio imperial de outras nações e territórios do seu interesse. A França estava então sob ameaça, e a Grã-Bretanha, essa senhora dos mares, era vista como a grande rival militar e económica.

As suas vitórias militares, que ele próprio ampliava para proveito político pessoal, com relevo para a campanha do Egipto, fizeram de Napoleão o Desejado pela maioria do povo francês e pela burguesia em ascensão, atemorizadas pelas alianças militares contra a França, desmoralizadas pela incapacidade e corrupção dos seus líderes, e cansadas dos excessos e turbulência da revolução.

Após o golpe Napoleão foi-se tornando, progressivamente, no senhor absoluto da pátria gaulesa, mandando fazer e desfazer conforme lhe desse na imperial gana, castigando ou distribuindo benesses tanto pela família como por amigos e adversários, numa lógica de permanência no poder, constituindo mais um exemplo de que “se o poder corrompe, o poder absoluto corrompe absolutamente”. 

Amante das dramaturgias trágicas de Corneille e Racine, que amiúde o levavam ao teatro, admirador dos grandes generais e líderes do passado, organiza a sua coroação como imperador, iniciando a fase do modo monárquico com vestes republicanas, desde logo pelo distanciamento e tratamento devidos a um rei.

Na mesma cerimónia coroa Josefina de Beauharnais (anteriormente Marie-Josèphe-Rose de Beauharnais) como imperatriz, por quem nutria um amor arrebatado e com quem casara aos 27 anos, apesar de ser quatro anos mais velha, mas cujo charme e “savoir faire” compensavam a falta de atributos especiais de beleza. Foi Josefina que despertou verdadeiramente o interesse sexual próprio da idade de Napoleão (para quem, na fase mais jovem, as relações sexuais eram uma perda de tempo, absorvido como estava pelos projectos e sonhos de glória). Josefina viria a fazer de Napoleão praticamente o que quis, incluindo mimoseá-lo com constantes infidelidades especialmente durante os tempos “vazios” das suas campanhas, que ele acabava sempre por desculpar, e que viria, aliás, a retribuir mais tarde, antes do divórcio pressionado pela “corte” e pela família.

Nesta biografia, aparentemente exigente e rigorosa, o autor afirma na Introdução que “Apesar de exibir algumas qualidades extraordinárias, (Napoleão) foi, de muitas maneiras, um homem bastante comum.” E que “foi, em todos os sentidos, produto da época em que viveu.”

Sem dúvida que o ambiente que então se vivia favorecia a eclosão de um golpe (o próprio Napoleão terá dito que podia ter sido protagonizado por um de dois generais em quem ele reconhecia qualidades), mas parece-me inquestionável que a sua extraordinária personalidade moldou indelevelmente os acontecimentos.

Mais do que imperador e reformador do estado, Napoleão foi sempre, antes de tudo, um militar e um cabo de guerra. Ele (e muitos com ele) considerava-se um génio divino, confiava na sua boa estrela, e acreditava no Destino, mas o biógrafo desce-o do pedestal: “Tenho dificuldade em considerar genial alguém que, não obstante todos os seus muitos triunfos, dirigiu o pior (e totalmente auto-infligido) desastre da história militar* e destruiu sozinho a grandiosa iniciativa que ele e outros tinham lutado tanto para construir. Foi sem dúvida brilhante em questões de táctica (…) mas não foi um estratego, conforme atesta o seu triste fim.”

Vassili Grossman, na sua admirável obra “Vida e Destino” escreve: “A consciência humana, virando-se para o passado, passa sempre pela peneira fina um grande acontecimento histórico, eliminando como joio o sofrimento, a ansiedade, a mágoa do soldado. Apenas uma narração vazia fica na memória, como era a disposição das tropas vitoriosas e como era a disposição dos vencidos (…) O que é guardado na memória será o cabo de guerra sábio e feliz que bloqueou o centro do adversário e atacou o flanco, e também como as reservas que apareceram subitamente de trás das colinas decidiram o desfecho da batalha (…)”

Poderíamos acrescentar que na guerra opera-se uma metamorfose: as pessoas transmutam-se em soldados, quer dizer em “máquinas” de matar e morrer legalmente, com isso perdendo a sua individualidade e dignidade para se converterem em meros dados estatísticos.

*A invasão da Rússia, que encetou a contragosto, e em que, por uma vez, reconheceu os seus erros.

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