António Mesquita
Como na música ou no teatro, há um prólogo em que a câmara só foca o fino tecido das ramagens. Estamos numa floresta a meio dia de viagem de Tóquio. No silêncio paradoxal das árvores e dos bichos, um homem serra um tronco e depois com um machado faz lenha com golpes precisos. Um tempo não despiciendo se passou nisto, como se não houvesse história. Mas depois sabemos que Takumi (Hitoshi Omika) é uma espécie de faz-tudo na aldeia de Mizubiki e leva água e lenha aos residentes. É um observador da natureza, com a consciência de que há nela um equilíbrio precário que mesmo os homens como ele, com a sua sageza, vieram perturbar.
Vemo-lo a seguir acompanhar a filha Hana (Ryô Nishikawa) à escola através do bosque. Ela aprende o nome das árvores e das plantas e colhe as penas de uma ave exótica. Ela e os seus 10 anos curiosos de tudo tem o mau hábito de não esperar o pai no regresso e voltar sozinha pela mata, espiada pelos veados selvagens. O pai, a uma pergunta dos citadinos diz que estes animais não atacam, a não ser quando feridos ou por causa das crias. De vez em quando, ouvem-se longe detonações, porque a caça furtiva nunca se interrompeu.
A vida na aldeia é bruscamente agitada pelos planos de uma empresa da capital que, aproveitando um subsídio estatal pretende instalar ali um parque de campismo. Apresenta-os sob o nome de 'glamping' (de glorious camping) e como um benefício para os locais. Numa reunião entre os seus representantes, Takahashi (Ryûji Kosaka) e Mayuzumi (Ayaka Shibutani) e os habitantes da aldeia, estes confrontam-nos com alguns problemas que vão afectar o ambiente e a vida de todos. Takumi, com alguma relutância, enumera os principais, como o da fossa séptica ser a montante e inquinar a água a jusante e o da segurança que implica 24 horas de vigilância. Takahashie e Mayuzumi voltam no carro para Tóquio convencidos da razão dos aldeões. Mas o CEO da empresa tem pressa por causa do subsídio que tem um prazo e o seu orçamento ser limitado. Está fora de causa aumentar os custos. A sua ideia é que não importa que os locais sejam contra, o que importa é que foram ouvidos. Para amenizar as coisas lembra-se de contratar Takumi como vigilante, reduzindo ao mesmo tempo o pessoal do parque.
Os representantes voltam a Mizubiki e procuram aliciar Takumi, mas este não precisa de dinheiro e mostra-se indiferente a qualquer persuasão.
É nesse interim que Hana desaparece na floresta e as buscas envolvem a população até ao cair da noite. Takumi por fim avista uma mancha de sangue e o corpo mais longe e adivinha o que se passou. Hana foi atacada por um veado ferido ou a quem mataram a cria.
Nesse instante o filme passa a outra dimensão. Vemos Takumi estrangular Takahashie que o acompanhava na busca. E há aqui uma espécie de contágio inter-espécies, Takumi comportando-se como o veado e punindo o estranho que rompeu o equilíbrio. Ele é também um homem pacífico a quem mataram a filha 'por procuração'. Há um continuum entre a vida dos homens e a dos animais que aparece subitamente, contra toda a nossa percepção de caçadores e carnívoros. Esse é o choque deste final que eleva este filme de Hamagushi às alturas dos mestres do cinema nipónico como Ozu e Misoguchi.
Uma palavra para a música. Disruptiva, sublinhando o momento expectante, a tragédia que se vai seguir.
Segundo o realizador, o título "O mal não existe" é algo irónico. De facto, o mal pode-se dizer que está no âmago da situação, com a invasão do meio natural pela cupidez ou pela necessidade dos humanos. Mas, por outro lado, devia-se pensar, literalmente, que ele não existe ou não está ali, como a tradução portuguesa preferiu. É que, tal como na guerra, a liberdade é a primeira coisa que se perde, frente à necessidade ou à força maior. E onde está o mal quando os nossos erros ou os nossos instintos nos puseram sob o cutelo da fatalidade?
Como dizia Kant: "Não é possível conceber-se no mundo - e, na verdade, nem mesmo para além do mundo - nada a que sem reserva se possa chamar bom, com excepção de uma 'boa vontade'." O que nos leva a inverter a fórmula dizendo que o único mal é a má-vontade.
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