Marques da Silva
A vida no seu deslizar pelo tempo acaba por semear raízes na nossa memória que brotam em flor quando procuramos acordar o passado. Sobretudo o passado mais longínquo parece renascer com cores diferentes daquelas com que o vivemos. Os lugares e as pessoas aparecem no presente mais vibrantes, festivas e com um sentimento cativante, algumas com imensa ternura. Eram os dias da eternidade, da esperança que rompia o medo e saltava sobre os mais diversos obstáculos que a cada esquina do tempo surgiam. A cada amanhecer descobríamos um sorriso no rosto de cada pessoa que nos tombava no olhar e crescíamos na dureza granítica das dificuldades, rompendo o abismo com a força hidráulica das máquinas construtoras. Viajávamos pela cidade como numa floresta, descobrindo os recantos sombrios, alimentando de luz os musgos invernosos e solidificando as paredes que erguíamos. Vivíamos o futuro como se já tivesse chegado, soletrávamos as letras dos poemas que nos queriam proibir de ler e ensaiávamos melodias que nos conduziam por avenidas amplas e sem fronteiras. Agíamos como se fôssemos imortais, pensando nos soldados de Dario, e cada um movia-se como se fosse parte de uma imensa coluna de blindados à conquista do amanhã. No silêncio das tardes sem fim, com o olhar em alerta percorríamos as ruas do velho burgo, as suas vielas esquecidas, com as suas quintas escondidas atrás de antigos muros de onde irradiavam lanços de roseiras florindo misturando-se com buganvílias extensas. Interiorizávamos o sentimento de que vivíamos em constante primavera, como se fosse uma festa da vida, um júbilo contagiante que nos impulsionava para a não desistência. E quando a noite chegava, por entre as sombras nocturnas, pelos bairros e ruelas, imitando o poema que falava de liberdade, espalhávamos a voz daqueles que não se viam, aqui e ali e mais adiante, como se a luz dos escassos lampiões nos indicassem o caminho onde só existiam rios que corriam para o mar. Eram as madrugadas sem fim que nos levavam sem descanso para diante. E a cada jornada sentíamos a queda de uma pedra do muro que nos tapava o futuro, que nos impedia de alcançar os dias serenos com que construíamos sonhos. E não faltava tempo, alcançávamos sempre o que não conseguíamos medir, mas pulsava em nós como uma canção que a memória soletrava baixinho. E encontrávamos olhares na quietude dos fins de tarde quando a luminosidade nos começava a apresentar a noite, eram olhares com tanta luz que acendiam de novo o dia e nos descansavam a alma em sonhos impossíveis. Para além do nosso, havia os olhares dos outros, daqueles que por nós passavam, nos rodeavam, entre os quais nos movíamos como parte de um todo que nos servia de refúgio. Cada um com a sua rotina, o seu trabalho, o seu mundo de dificuldades e as suas quimeras guardadas na amargura do tempo sem fim. O caminho do rio e do mar, os navios que iam e vinham, as pontes da travessia unindo lugares e fusionando uniões que permitiam um caminho mais largo, menos penoso, mais fortificante. Está tudo tão longe e ao mesmo tempo ainda se sente o pulsar daqueles dias plenos de fraternidade, de almas comuns que se amparavam na solidão silenciosa de um caminho que podia ser longo. “Unidos como os dedos da mão”, perseguíamos utopias, desses sonhos que só se alcançam caminhando, e a cada vitória, a utopia afasta-se um pouco mais, como nos explicou esse imenso escritor uruguaio, e de novo voltamos a caminhar. Sentados agora na arca do tempo, olhamos para o longe com o sentimento do presente e chega até nós o toque do tambor daqueles que insistem em desbravar bosques fechados com as mãos livres de quem resiste.
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