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01/11/24

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ALEGRE

Mário Martins





As memórias de Manuel Alegre, agora com 88 anos, dadas à estampa este ano, revelam uma personalidade rara, decerto desconhecida, pelo menos parcialmente, do cidadão comum.

É, de facto, surpreendente, a combinação do homem corajoso e de acção política que sempre foi, - na luta contra a ditadura e a guerra colonial (para onde foi destacado, por pressão da Pide), e pagando, por isso, com as perseguições e prisão pela polícia política e o exílio de dez anos, e na defesa da liberdade e do progresso social no regime democrático, sofrendo incompreensões de vária ordem, confundindo, de tal modo, a sua vida com a evolução do país nas últimas seis décadas, - com as facetas de desportista campeão de natação, que também foi, e de amante da caça e da pesca, além do tiro, que ainda será, ou com os dons da oratória incisiva, da poesia e da escrita, e até de uma certa sensibilidade mística que perpassa nas suas memórias.

O livro abre com um episódio trágico: “A 16 de Maio de 1828, os liberais de Aveiro revoltaram-se contra o decreto em que D. Miguel convocava Cortes para se proclamar rei absoluto. A revolução foi dirigida pelo desembargador José Joaquim de Queiroz, avô de Eça de Queiroz. Nela estiveram envolvidos meu trisavô Francisco da Silva Melo Soares de Freitas, futuro visconde do Barreiro, e seu irmão Clemente. Francisco conseguiu escapar para o Brasil após o triunfo das tropas miguelistas. Mas Clemente foi apanhado de armas na mão a defender as linhas liberais. Seria preso, enforcado e decapitado na Praça Nova, no Porto, juntamente com três ilustres aveirenses, enquanto frades e damas miguelistas bebiam cálices de Porto (…) As cabeças cortadas foram transportadas para Ovar, daí para Aveiro e espetadas em paus à frente das casas de família (…)” 

Tenho tentado ser fiel a esta herança, diz Alegre. “Talvez ela ajude a compreender melhor a minha oposição a todos os absolutismos e a todas as formas de ditadura.”

A fechar, após confessar que a vida partidária deixou de o interessar, e considerar que se a experiência socialista falhou, a pergunta permanece sobre a injustiça do capitalismo, Alegre sustenta que para “decifrar a imprevisibilidade de um Mundo virado do avesso, seria preciso uma nova vidência poética. Mas as musas gregas estão feridas. O anjo de Rilke está fechado em Duíno. E o duende de Lorca não aparece nos rebordos dos lábios que sangram (…)”

Mais do que de economistas, este é um tempo que precisa de filósofos, poetas e profetas. Mesmo que a folha branca seja o deserto em que têm de pregar contra o ruído do Mundo – em busca da música perdida.”

Assim falou o poeta…



NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Agia Sophia



Roma. Outono. Não estranhes se encontrares melancolia neste postal. Se tal acontecer é uma mistura de cansaço e tristeza pelos dias se extinguirem a meio da tarde, mesmo aqui tão próximo do Mediterrâneo. Percebi este sentimento contraditório ao atravessar a Piazza Navona e ao escutar as águas tombarem saltando pelo branco marmóreo da Fontana dei Quattro Fiumi. Trouxeram-me à memória o som constante que ouvimos nas Terras Altas da Escócia quando no fim da Primavera o aquecimento rebenta com o gelo que cobre as águas contidas e estas correm apressadas para o seu destino. Lembrei as palavras de Sophia a um dos seus filhos quando nesta praça deixava o tempo deslizar e aquele se impacientava, «tem calma, antes de vermos temos de observar». Fiz os possíveis por não me apressar. Queria que o olhar vadiasse sem tempo pelas ruas da antiga capital do império. Assim segui até à ponte de Vittorio Emanuele II, junto ao castelo de Sant’Angelo. Já antes ao atravessar a Piazza Venezia e admirar o Altar da Pátria me encontrara com este rei e a sua lembrança leva-me até Verdi. A rebeldia dos combatentes da liberdade por uma Itália unificada assumiu a grandeza da criatividade. Enquanto revivia os sons de Nabuco, dizia para mim mesma, quem diria, o grito da Itália no nome de Verdi (Vittorio Emanuele Rei D’Itália). Como corriam os austríacos imperiais apagando o nome de Verdi das paredes das ruas do Norte de Itália. Mal sabiam que se pode prender as pessoas, mas nunca o pensamento. A Via della Conziliazione conduz-nos em linha recta à Piazza de San Pietro. Entramos na Cidade do Vaticano onde não alcança o poder do Estado italiano. É um cerco sem fronteiras. Rodeamos a praça e entramos de olhar aberto na Basílica. Os olhos detêm-se por momentos na Pietà mas são impelidos, atraídos para cima. É nas paredes e nos tectos que se encontra a grandeza dos terrenos como oferenda aos céus, a Deus. Tudo é volume, exagero, as artes excedem-se na representação, mas quando alcançamos o cruzeiro e o olhar se prende nos transeptos e no interior da cúpula aparece um sentimento de fragilidade perante o poderio que nos esmaga. Alguém murmura ao meu lado, «aqui se compreende o poder da Igreja». De certa forma, a arquitectura parece austera e ao mesmo tempo, poderosa, esmagadora. A cúpula de Santa Maria del Fiore em Florença aparece-nos com magnitude semelhante, sem austeridade, mas mais simples, mais bela. Como a descreveu no domínio da intenção, o notário Ser Mino de Cantoribus, que "a indústria e o poder do homem não pudessem inventar ou mesmo tentar nada maior ou mais belo". Realçava, portanto, a arte, a beleza. Agia Sophia, nascera mil anos antes desta Basílica de São Pedro e também ela queria demonstrar a ostentação de poder, riqueza, domínio, mas demonstraram tudo isto pela beleza e a arte. Quando o Império do Oriente sobrevivia ao declínio do Ocidente, Agia Sophia erguia-se para provar que haveriam ainda mais de mil anos imperiais. Não sei se foi com essa intenção, mas em Agia Sophia, tudo é luz, tudo é arte, tudo é beleza. As cores são claras, vibrantes, apelativas e atraem a luz que penetra por todas as aberturas. Pode-se sentir essa máxima cristã de que Deus está em todo o lado. Cinco séculos depois as catedrais góticas vão tentar captar esta luz que jorra do céu, mas sem o mesmo esplendor. Agia Sophia é única e inimitável. Mas em S. Pedro, em pleno século XVI, o que se pretende é não deixar dúvidas sobre o poder, de Deus naturalmente segundo o poder cristão, mas na verdade, servindo o poder da terra. Pensar que mil anos antes, o Cristianismo caminhava nos tuneis do desaparecimento com a repressão imperial a decapitar a sua intelectualidade. E é Constantino após a vitória sobre Magêncio que tem uma decisão que altera e vai definir decisivamente o rumo da Cristandade. Com o Édito de 313 os cristãos passam a ser livres de professar a sua fé. No momento em que o império declina, o Cristianismo vai expandir-se. Constantino unifica o império pela última vez e nos arredores de Constantinopla, reúne o Concílio de Niceia, no qual estará presente e onde, perante a auréola que vê tentarem colocar-lhe, diz que não é Deus. No entanto, Eusébio de Cesareia, o primeiro historiador a escrever uma história global do ponto de vista cristão, dir-lhe-á, não és Deus, mas és imperador pela vontade de Deus. Não é porque que quer, mas porque Deus o exige. Será este Eusébio que estabelecerá uma relação entre o aparecimento de Deus a Constantino na véspera da batalha contra Magêncio que ditou a vitória e o entronizou como imperador, daí a mudança do seu comportamento em relação aos cristãos. Oitocentos anos mais tarde, os crúzios de Santa Cruz de Coimbra, vão construir uma história semelhante na invenção da batalha de Ourique em que Deus apareceu a D. Afonso Henriques para lhe dizer, vencerás e serás rei por minha vontade. O Império Romano tombaria definitivamente no século XV, mas a Igreja continuaria, pese embora, as crises que sempre atravessa. Deus é uma ideia interior enquanto os impérios não passam de um poder terreno de ganância, luxúria, desigualdade, infâmia, em suma, arrastam consigo uma cartilha de maldades. Desço pela Via del Penitenzieri e di Porta de Santo Spirito até ao Tibre. Sigo pela margem e sento-me nos jardins de Sant’Angelo ou como lhe chamam, Parco della Mole Adriana. É um lugar calmo, rareiam as gentes e deixo-me ficar a pensar no tempo que vivemos. Se aqui estivesses talvez te dissesse que por vezes a vida é um absurdo, pois sendo tão curta, não deixa de ser como os impérios e destes apenas fica na História o relato das maldades dos que mandaram e pareceram um dia deuses na terra, mas na verdade nunca passaram de um grão de areia nesse mundo de milhões e milhões que viveram antes deles e de outros milhões e milhões que viverão depois deles. Neste tempo que vivemos, outro império se desmorona com ruído e como todos os que o antecederam, vai deixando um rasto de destruição e sangue. Haverá sempre quem não desista de os combater como os heroicos árabes que na Palestina e no Líbano me fazem lembrar os imortais de Dario. Declina a tarde com melancolia, mas ao contrário dos impérios, quando morrem, na vida, novo dia há-de renascer. O postal segue no próximo correio.
     

JOGO ORÇAMENTAL

Manuel Joaquim



Durante semanas fomos bombardeados com notícias sobre o orçamento para 2025. Linhas vermelhas, percentagens, aumentos salariais e das reformas, bonificações, isenções e benefícios fiscais, foi o que ouvimos e lemos durante largos dias. Sobre o conteúdo do próprio documento ninguém falava, ou por ainda não ter sido publicado ou por reserva política ou mental sobre o mesmo. Uma força política declarou logo de início que ia votar contra o orçamento. Outra força política declarou que não entraria em negociações, que era contra e que a sua posição era irrevogável. Mais tarde declarou que fez cinco reuniões com o primeiro-ministro, (este confirmou duas), e que este tinha-lhe até prometido lugares num futuro governo. Outras entraram em negociações. Uma delas protagonizou todo o espaço de negociação com o governo, um verdadeiro folhetim de declarações dizendo que era contra o orçamento por ser muito mau por aquilo que tinha por aquilo que não tinha. 

Todos os comentadeiros de serviço e o MAIOR, cumprindo instruções dos seus alimentadores, defendiam a passagem do orçamento sob pena de ser o caos para o país pois tinham ouvido todos os portugueses e que estes não queriam eleições, pretendendo condicionar a decisão do negócio.

Antes da data marcada para anunciar a decisão, o maior desta força política, veio anunciar que, não obstante o orçamento ser muito mau para o país e para os portugueses, propunha a abstenção. Provavelmente uma abstenção violenta tal como aconteceu com a mesma força política em 2011. Segue a mesma linha de há muitos anos.

Um amigo meu escreveu que “o grandalhão é grande mas não é grande coisa”


POESIA

Helena Serôdio





CONSUBSTANCIAÇÃO



Criei-te belo,
Viril,
Perfeito.
E voaste do meu pensamento
Com possantes asas de condor,
Garras de águia com dedos de flores,
Olhos de abismo,
Corpo e alma livres como o vento!

Não sei se tu existes
Ou se vives só dentro de mim.
Mas o meu olhar é espelho da tua imagem,
Na minha boca fala o teu silêncio,
Nas minhas mãos vibram os teus gestos!

Em ti começa e acaba o que não tem fim... 

Tu só és real quando te corporizas em música 
E dela se evola a tua presença.
Quando
Os teus braços se estendem para a minha fragilidade
E a firmeza dos teus pulsos me sustém.
Quando
O teu sorriso se enflora como um jardim
E num cântico de ave
A tua voz incendeia os meus ouvidos.
Quando
O sonho é uma fuga para o espaço
Que nos leva a um paraíso interdito
E tu trazes o perfume da noite
Em que hei-de morrer contigo.
Quando
Há uma pausa esquecida no tempo
E num breve interlúdio de amor
A tua sombra se une à minha.
Quando,
Súbitamente,
O teu beijo perpetua esse instante
E o instante eterniza a minha vida!...

O TESTAMENTO DE COPPOLA

António Mesquita




Na fábula que Francis Ford Coppola  construiu sobre a América dos dias de hoje, assistimos a uma reinterpretação da história da Antiga Roma. Porém, não devemos esperar que Cícero ou Tito Lívio nos ensinem alguma coisa sobre o filme. 

O homem que aparece aqui com uma visão de futuro, do lado certo, portanto, Lúcio Sérgio Catalina de seu nome, é um conspirador perigoso para Marco Túlio Cícero. "Até quando, ó Catilina, abusarás tu da nossa paciência?" é mesmo uma das mais famosas citações da oratória romana. Mas, a favor de Coppola, está o facto dos historiadores só terem a  versão ciceroniana. Catilina poderia, talvez, ter evitado Augusto e o  fim da república.

O domínio mundial  da nação fundada por Eneias foi um dos mais longevos da história e o império  que se seguiu ao assassinato de César e à derrocada das instituições republicanas foi o princípio do fim. O  "império" americano está longe de poder sustentar essa comparação.

Digamos que para a figura da fábula isso é irrelevante. Dos sinais que parecem destinar a nação americana e o seu "império" a um rápido declínio, nenhum é tão importante como o fenómeno Trump. Aliás, o assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021 tem uma alusão clara no filme. E a identificação do homem do MAGA com a ideologia fascista é feita, dum modo rebarbativo com imagens de Hitler e de Mussolini. A expressão "que se mete pelos olhos dentro" podia aplicar-se, também, às liberdades formais do realizador, como o écrã tripartido,  ou às incoerências  da narrativa. Como um vinho velho, o filme de Coppola e a sua direcção podem apresentar sedimentos. Nada disso diminui o interesse de "Megalópolis". A sua dramaturgia revisita a cultura latina com um 'flair' que nos habituamos a esperar do autor de "Apocalypse Now".

A tecnologia, longe de ser diabolizada, aparece aqui associada às chances dum futuro possível, quase radioso, a julgar pelo final feliz da fábula. Catilina, no filme, é um arquitecto ambicioso e pretende fundar a nova cidade de Nova Iorque com um material revolucionário chamado Megalon, que lhe permite controlar o espaço e o tempo. Como estamos longe disso! E, no entanto, o que promete a Inteligência Articial não é menos revolucionário.

É  curioso que uma das causas identificada, por exemplo, por Montesquieu, como na origem da decadência do império romano, a  adulteração do moral do exército e da sociedade pela inclusão de outros povos (os bárbaros) na cidadania romana, esteja hoje no  centro do turbilhão político americano e europeu, através do populismo e da extrema direita.

Em entrevista, Coppola disse: “Agora, a América é Roma e estamos prestes a passar pela mesma experiência, pelas mesmas razões que Roma perdeu a sua república e acabou com um imperador”.

Mas Roma deu lugar ao feudalismo e à Idade Média (das trevas, para alguns). FFC parece acreditar que a tecnologia nos pode livrar disso, associada ao poder nas mãos dum Catilina. Não é por acaso que esta encarnação moderna de Lúcio Sérgio é arquitecto. A sua visão para a Nova Roma  era já a do romance de Any Rand, "Fountainhead", que também inspirou um filme, com Gary Cooper, em 1949, a King Vidor. A democracia, neste aglomerado de tecnologia e arquitectura utópica não estaria longe, talvez, de uma nova Idade Média, com os seus feudos e a sua descentralização. Não é Varoufakis que fala num novo feudalismo que já definiria o nosso mundo, em termos económicos?

Podia dizer-se que um filme tão desigual e que tanto divide a crítica é um parco resultado para os 120 milhões que dizem que Coppola investiu nele. Mas é um testamento  que exprime a confusão dos tempos e não desonra o autor do "Apocalypse Now".

01/10/24

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Florença, Junho. Envio-te novo postal. Desci pela costa, vagarosa e de olhar perdido. Não queria ficar e não tinha pressa de chegar. Deixei-me ir pelos dias de sol que me foram recebendo. Havia em mim uma mistura de ansiedade, de surpresa, de receio, como naqueles momentos em que nos preparamos para conhecer alguém e tememos que a realidade não corresponda à imagem que construímos antecipadamente, em alguns casos, como agora, há muito tempo enriquecida pela imaginação. Em Ravena dirigi-me para o interior, embrenhando-me na Emília-Romagna e na Toscânia. Entrei lentamente, como se levasse os olhos fechados e tivesse medo de não encontrar o que procurava. Abri-os quando me sentei num dos recantos do Giardino Bardini. Alheei-me do que me rodeava e, por fim, deixei que o olhar se abrisse para o horizonte que se estendia como uma planície. Estava tudo na minha frente e era real, até a tonalidade que cobria as pedras, os telhados, as paredes, as folhas, as árvores, apareciam como nas pinturas que tanto contemplara em madrugadas de sonho. O Arno, a Ponte Vecchio, a Campanile di Giotto e a extraordinária cúpula de Brunelleschi em Santa Maria del Fiore, a Torre de la Signoria, a Basílica de Santa Croce. A imaginação arrasta-me em viagem, desfolha-me os pensamentos, navega pela História, pelo tempo pretérito, pela soma dos dias que permitiram que os meus olhos pudessem agora apreciar a beleza construída em cima de séculos que, parecendo idílicos, guardaram poderes malignos, avarezas insuportáveis e misérias humanas sem limite. Mas ao mesmo tempo que o presente nos traz o belo secular, permite que nos rebente sobre o pensamento a violência modernizada, arrasadora nas suas explosões, ainda mais intolerável nos seus crimes. É o declinar de um mundo colonial que espoliou os povos ao longo de cinco séculos. A humanidade que constrói lugares e espaços que nos permitem o êxtase perante a magnitude do seu esforço, não impede que nos seus actos mais pérfidos seja capaz de reduzir a escombros, sejam monumentais obras de arte ou simples habitações de viver e, ontem como hoje, servindo-se de um Deus como protecção justificativa de tamanhas maldades e alguns desses criminosos são recebidos como pequenos deuses em areópagos mundiais debaixo de salvas de palmas daqueles que lhes encheram as mãos de pedras para as soltarem em gritos de selvajaria e de infâmia. Regresso a este jardim de encantado verde vigiando Florença e início a descida para me aproximar dos espaços que os olhos há tanto tempo imaginaram e construíram em sonhos, mas agora sem o temor de poder não encontrar o que tanto desejei. Caminho com essas demoras de quem não tem destino nem horário. Na Piazza di Santa Maria Soprano aproximo-me do Arno e deixo-me enlevar pelas águas que se movem ainda mais lentas do que o ritmo dos meus passos. Paro na entrada da Ponte Vecchio e não consigo esconder o sorriso que me enche a alma, pelo fascínio deste lugar tão ansiado e tão intensamente concebido. É como desembrulhar um presente que nos trazem, não sabemos o que é, mas apressamo-nos em descobrir desejando que seja algo que muito gostamos, mas sem sequer sabermos o que verdadeiramente queremos que seja. Percorro a Piazzale degli Uffizi com a solenidade de quem presta uma homenagem ao passado e à humanidade. Lembro-me do poema a Galileu e como o recitávamos juntos naquela parte em que o Mestre dizia a tudo que sim, que sim senhor, que era como suas eminências diziam, “Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. (…) que o sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.” E no final ríamo-nos, não do pensamento humano da época, mas das resistências que a ciência tem sempre de ultrapassar e vencer. Entro na Piazza della Signoria e sento-me nas breves escadas frente ao Palácio Vecchio. Espanto-me no volume da sua grandeza, da sua imponência. A sua torre soberba em pedra trabalhada com a sua varanda extravasando os limites das paredes, erguia-se já acima da Campanile di Giotto e igualava a cúpula de Brunelleschi. Era o desafio do poder profano sobre o religioso. Ainda não o ultrapassava, mas a posição que assumia já não permitia dúvidas. O poder económico das famílias burguesas e mercantis de Firenze reclamavam o que consideravam seu como de direito. Sabes como gosto de viajar sozinha, mas nestes lugares, nestes momentos, nestes espaços de reflexão como este onde me encontro na Piazza della Signoria, procuro-te como conforto, como amparo desta fragilidade que sinto na imensidão deste poderio que os olhos vêem e a alma sente. Caminho já no dealbar da tarde até à Piazza de San Giovanni. Santa Maria del Fiore está encerrada, o Battistério de San Giovanni também. Detenho o olhar na Porta del Paradiso e permito que as ideias fluam como uma barca num rio de águas calmas. Uma música lenta e um canto triste chegam no rumor de um crepúsculo que se aproxima. Sinto-me como se ainda fosse possível ver os Médicis entrar em Santa Maria para se despedirem de um dos seus cuja vida terminou num assassínio mortífero. Ontem como hoje eram as lutas perversas por um poder onde sobrava a ganância e a inveja e tanto carecia de justiça e de igualdade. As luzes acendem-se e fazem brilhar o lajedo das ruas de Florença. O dia partiu e a noite chegou. O postal segue em breve.

EVOCANDO CAMÕES

Manuel Joaquim



Iniciaram-se este ano, 2024, as comemorações do Quinto Centenário do nascimento de Luís Vaz de Camões, que vão prolongar-se durante o ano de 2025. 

Na História da Literatura Portuguesa, de Óscar Lopes, consta que “a biografia e a bibliografia de Luís Vaz de Camões levantam numerosos problemas insolúveis por falta de dados”, e refere que terá nascido em 1524/1525 e falecido em 1579/1580. Outros autores referem que faleceu em 10 de Junho de 1580.

Sabe-se que teve como tutor um tio, D. Bento de Camões, prior do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra e Chanceler da Universidade, que o terá orientado na sua educação. Há muitos escritos sobre Camões mas não vi até hoje, onde ele bebeu tantos conhecimentos e cultura contidos na sua obra. Nenhuma referência a uma possível frequência da Universidade Carlos, em Praga, na altura, a mais avançada da Europa, certamente orientado pelo seu tio D. Bento, conforme alguns autores checos. 

Neste tempo de comemorações, não esquecendo que em 1979, no quarto centenário do seu falecimento, alguém (Álvaro Cunhal, Festa do Avante! Em 1979) prestou-lhe homenagem dizendo que “Camões não é a voz da reacção e do colonialismo. Camões é a voz do nosso povo, dos Lusíadas, a voz da insubmissão ante os privilégios, a voz do progresso social e científico, a voz da nação portuguesa, num elevado sentido humanista”, estão e vão ser publicadas obras sobre este Homem da Renascença, que é preciso que as pessoas leiam.  Os Lusíadas foram impressos em 1572 em Lisboa.

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
muda-se o ser; muda-se a confiança;
todo o mundo é composto de mudança,
tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
diferentes em tudo da esperança;
do mal ficam as mágoas na lembrança,
e do bem ( se houver), as saudades.

O tempo cobre o chão de verdade manto,
que já coberto foi de neve fria,
e enfim, converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
outra mudança faz de mor espanto,
que não se muda já como soía.

----

Mas um velho, de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça descontente,

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Cum saber só de experiência feito,
Tais palavras tirou do esperto peito;
«Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!

---

Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!

---

Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.»


(Os Lusíadas, Canto IV, estrofes 94 e segs.)
(Retirado do boletim “esteiro”, Setembro de 2024)

OPHELIA

Mário Martins

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Nunca amamos alguém. Amamos tão-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que amamos.”

Bernardo Soares/Fernando Pessoa
Livro do Desassossego


Utilizo deliberadamente a grafia usada na época para designar o nome da única “namorada” de Fernando Pessoa porque - malhas que a mobilidade ortográfica tece - tal como os opositores de hoje ao acordo ortográfico de 1990, o poeta se manifestou contra o formulário ortográfico da língua portuguesa introduzido por decreto em 1911, já que o mesmo despojava o português escrito do seu “manto régio greco-latino”. 

Apesar de Pessoa ter sucumbido aos olhares de Ophelia, nunca assumiu, publicamente e para si próprio, que a “Bebé, Bebezinho, Nininha ou Vespa”, como a tratava, fosse a sua namorada. A relação amorosa, a que o poeta viria a pôr termo um escasso ano depois, não passara de umas viagens de eléctrico e de uns beijos loucos do “Fernandinho ou Nininho”, no relato, muitos anos mais tarde, de Ophelia. Esta estava apaixonada por Fernando, queria casar e constituir família com ele, mas este não queria ter na vida qualquer compromisso: 

Pertencer – eis a banalidade. Credo, ideal, mulher ou profissão – tudo isso é a cela e as algemas. Ser é estar livre.” (Livro do Desassossego).

 Por isso, lhe aparecia algumas vezes como Álvaro de Campos, que ela odiava e achava maluco, “portando-se de uma maneira totalmente diferente e a dizer coisas sem nexo”, na descrição de Ophelia. Esta, que viria a casar três anos depois da morte de Pessoa, nunca deixou de se sentir apaixonada por Fernando e de o esperar, o que viria a acontecer, de modo ainda mais fugaz, dez anos depois do fim da primeira relação.

No ano da “morte”, não de Ricardo Reis, que lhe “sobreviveu”, mas do seu criador Fernando Pessoa, que viria a falecer em 30 de Novembro de 1935, operou-se uma reviravolta no pensamento e atitude do poeta e escritor, especialmente em termos políticos e sociais.

De posições, no passado, de aceitação de uma ditadura transitória que pusesse cobro à instabilidade da Primeira República; de compreensão da existência de classes sociais e até de complacência perante a escravatura:

Aceito a injustiça como aceito uma pedra não ser redonda” (Caeiro/Pessoa).

de aversão, ele que era um feroz individualista, a toda a sorte de grupos sociais:
 
Falaram-me em homens, em humanidade,
Mas eu nunca vi homens nem vi humanidade.
Vi vários homens assombrosamente diferentes entre si,
Cada um separado do outro por um espaço sem homens.”
(Caeiro/Pessoa)

passou a criticar acerbamente Salazar, sobretudo pelo cerceamento da liberdade individual que prezava acima de tudo, renegando o folheto que escrevera no passado sob o título “O Interregno – Defesa e Justificação da Ditadura Militar em Portugal”, e expondo, mesmo, o ditador ao ridículo: 

Em Novembro de 1934, Salazar fez publicar a Carta Orgânica do Império Colonial Português, “que sustentava um controlo mais rígido e centralizado por parte do Estado Novo sobre as oito colónias de Portugal”, ao que Pessoa “respondeu” com uma “Carta Inorgânica do Estado Independente do Bugio” (aquele pequeno banco de areia com um farol localizado na barra do Tejo), em que o primeiro dos diversos artigos da carta afirma que as leis do Bugio serão o exacto oposto das do continente. Naturalmente que tal carta não foi publicada porque não passaria no crivo da Censura, mas também, como era típico em Pessoa, porque tantas cartas que escrevera a diversos destinatários ao longo da sua vida acabavam no baú, onde repousavam os mais diversos e fragmentados trabalhos poéticos e literários.  

A criação nesse ano da Federação Nacional para a Alegria no Trabalho, conforme o modelo de idênticas organizações da Itália fascista e da Alemanha nazi, mereceria um curto poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa em que se fazia uma 

Saudação a todos quantos querem ser felizes: Saúde e estupidez!”

Na cerimónia de atribuição dos prémios literários do Secretariado da Propaganda Nacional, a que Pessoa concorrera com o único livro da sua poesia portuguesa publicado em vida, Mensagem, à qual não compareceu, Salazar proferiu um discurso em que defendeu, como é próprio das ditaduras, que as obras dos escritores deviam não só observar “certas limitações, mas também algumas directrizes definidas pelos princípios morais e patrióticos do Estado Novo.”, justificando a Censura. E citou Séneca: “Em estantes altas até ao tecto, adornam o aposento do preguiçoso todos os arrazoados e crónicas.” Pessoa, considerando estas declarações um ataque aos escritores, “responde” ironicamente com o poema “Liberdade”:

Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura
Sem literatura.

(…)

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

A mudança drástica do seu pensamento transparece na máxima “Tudo pelo Indivíduo, nada contra a Sociedade; tudo pela Humanidade, nada contra a Nação; tudo pela Igualdade, nada contra a Liberdade.”, que sucederia a “Tudo pela Humanidade, nada contra a Nação” que opôs à de Salazar e do seu Estado Novo: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação.”

Concluiria a sua vida com uma autodefinição:

Sou a cena nua onde passam vários actores representando várias peças. O que sou essencialmente – por trás das máscaras involuntárias do poeta, do raciocinador e do que mais haja – é dramaturgo.”

Uma nota final: esta notável biografia, da autoria de Richard Zenith, tendo sido publicada originalmente em inglês, parece-me ter merecido de Salvato Teles de Menezes e Vasco Teles de Menezes, uma tradução para português ao nível da obra biográfica.

POESIA

Helena Serôdio




ESTRELA CADENTE



A noite tombou
Imersa na sombra.
Esvaída em luar,
A Lua acordou,
Arrastando no céu
Seu manto de arminho
Crivado de estrelas.

Pálida e triste
A Lua brilhou!
A noite cresceu,
Num silêncio
E envolveu num abraço
A face do Mundo.

E nesse momento,
Em que a noite desceu
E a Terra abraçou,
Uma estrela cadente,
Fendeu o espaço
Num jacto de fogo.
 Uma estrela cadente
O céu
inflamou!

A estrela brilhou
Sómente um instante
Na área infinita
Do imenso universo.
Depois se apagou.
A treva extinguiu
Seu rasto de luz.
E a estrela caiu
Do alto do céu,
Na Terra sombria
Onde se perdeu.

Uma estrela cadente,
Enorme e luzente,
Nasceu e morreu
E ninguém a viu!

Era a minha alma,
Que vivia hesitante
Entre a Terra e o céu.

E ninguém sentiu!....
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