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01/12/24

209

CONCLAVE

António Mesquita




"A Criação" de Miguel Ângelo no tecto da Capela Sistina continua a ser testemunha das enchentes de admiradores verdadeiros ou de simples turistas que cumprem apenas um 'must' da sua viagem a Roma. O CO2 dessas massas é um preço a que não se pode fugir. Também ali reúnem mais de uma centena de cardeais, pelos dias necessários, em "perfeito" isolamento do mundo exterior, quando é preciso eleger um novo papa. Esses, não são admiradores nem turistas, e entregam-se a uma outra criação que é a de transformar um deles, com todas as suas imperfeições, no sumo pontífice da Igreja Católica. Para isso votam as vezes que forem precisas e os papéis do voto são queimados, sem afectar a preciosa pintura, espera-se.

O filme de Edward Berger que já nos deu, há  dois anos, uma nova versão do filme de Lewis Milestone de 1930 sobre o romance de Erich Maria Remarque, centra-se nesse acontecimento  vital para o funcionamento da Igreja. E fez um filme notável, não só pela interpretação dos principais actores, como na narração das várias peripécias. A política, como não podia deixar de ser, é omnipresente, mesmo quando as fracturas parecem opor conservadores, como o cardeal Tedesco que querem voltar a uma instituição mais fechada ao mundo e a qualquer tipo de 'aggiornamento' e os renovadores que pretendem, através da abertura e duma nova linguagem suster o que parece um inevitável declínio, pelo menos no mundo mais desenvolvido. 

O 'parti pris' de Edward Berger não deixa dúvida, quando chegamos ao fim da história. É um padre afegão, que 'viveu na pele' a sua condição de padre, no meio da pobreza, da perseguição e do fanatismo, que é eleito o novo papa, depois que os favoritos foram, um a um, descartados, quer por maus-passos da sua juventude, como o negro Adivemi, ou Trembley (John Lithgow) que orquestrou a exposição do outro, embora, até  certo ponto inconscientemente, obedecendo ao desejo do papa moribundo. Este golpe de teatro - Trembley tinha a eleição 'no papo' -, provocado por alguém, já no 'outro mundo', que conhecia bem o Vaticano e os seus corredores conspirativos e que, presumivelmente, desejava um desfecho como o que aconteceu, de facto, mostra-nos uma Igreja fragilizada, para lá da pompa e dos seus tesouros que tornam a sua  cidade-estado na Meca do Ocidente - passe a provocação -, uma Igreja que já terá perdido a 'alma'  e que é por estar consciente disso mesmo que o colectivo, depois de afastados os favoritos, escolheu o escândalo dum sucessor do terceiro mundo, 'pobre como o Cristo'  podia-se dizer e, não a menor das provocações, sexualmente ambíguo.

O padre Lawrence (Ralph Fiennes) que protagoniza esta parábola sobre o 'suicídio' da Igreja (paradoxalmente, através do regresso às suas origens, com o novo papa Benitez), a meio do filme, expressa a sua profissão de fé e a sua convicção de que 'não é digno', dizendo que tem dúvidas quanto à oração. E, perante o conclave, justifica-se com este raciocínio: quem tem a certeza não duvida, mas é quem duvida que precisa de fé. Ele não tem a certeza. 

Berger sabe bem que a fé pode tornar-se uma certeza. É isso que acontece em toda a fidelização e, claro, no fanatismo político ou religioso.

O seu filme, quanto mais não seja, por abrir um debate ao arrepio dos tempos que correm, merece todos os prémios.

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957)


Santa Margherita di Belice. Final do Outono. Ao longo da vida, por diversas ocasiões dizemos frases contraditórias como forma de adjectivar o que vemos ou sentimos. Na verdade, embora parecendo, não chegam a sustentar uma contradição, mas antes se complementam. Quando expressamos a ideia de que «o Mundo é grande» ou "a Terra é pequena» estamos a querer dizer que este planeta onde habitamos encerra duas grandes dimensões. O Mundo é grande, pois por muito que viajemos e por longa que seja a vida, nunca alcançaremos conhecer todo o seu conjunto territorial com a sua natureza, os seus povos, as formas de viver nas suas diversidades, o dia e a noite em cada momento e em cada lugar. Por outro lado, a Terra é pequena quando a pensamos na magnitude universal, mesmo que apenas na sua galáxia. Mas a Terra também é pequena quando no interior de multidões ou separados por geografias com distâncias nem sempre fáceis de percorrer, encontramos alguém de forma inesperada. Foi isso que me assaltou o pensamento quando vi uma personagem caminhar lenta e descontraidamente, na direcção onde me encontrava. Saí de Roma com a intenção de viajar para Sul, mas sem destino e sem tempo. A tarde estava com aquela quietude melancólica do outono e, sentada, deixava que o olhar se perdesse pela multidão que chegava e partia. Foi nessa sonolência que fui despertada para alguém que se aproximava. A incredulidade daquela aparição durou alguns segundos e foi nesse deslizar do tempo que disse num murmúrio, «a terra é pequena». Ali estava na minha frente, Giuseppe Tomasi di Lampedusa. Amável, discreto, com um sorriso e poucas palavras convidou-me a visitar a sua Sicília natal e a casa onde nas férias de Verão, deixou correr a sua infância. De um momento para o outro a viagem que me levava para Sul, adquiriu destino. Desci pela Calábria e atravessei o mar em Messina. Encantei-me por esta cidade. Talvez pelo mar, pelo sol, pelo universo de azul ou ainda por sempre me fazer lembrar a Grécia, a outra, não esta. Segui para Palermo para descobrir os passos de Giuseppe, embora, sem saber, se procurava a vivência do escritor ou do narrador de “O Leopardo”. Talvez ambos, pois as suas vidas misturam-se. Em Palermo não consegui evitar o cheiro da máfia. Era um odor que já viajava comigo e ficou mais intenso. Tomei o comboio pela costa como Lampedusa na sua infância até Castelvetrano. O que era uma jornada de pesadelo até Santa Margherita di Belice agora é um deslizar tranquilo. Montevago, como nos diz no relato da sua infância era um dos passeios longos, mas agora ambas as pequenas cidades quase formam o mesmo espaço urbano. Subitamente, Santa Margherita desilude-me. É uma cidade nova com casas baixas, é certo, mas nada resta da velha aldeia. Como um dever, mas muito prazer, percorri os recantos do Museo del Gattopardo e o Parque Literário. Por ali me deixei ficar longas horas, meditando sobre Lampedusa e a sua obra. Fazendo parte da aristocracia siciliana, Lampedusa não só nos relata na sua obra prima a decadência da nobreza da Sicília no espaço temporal em que os Bourbons desaparecem e as hostes de Garibaldi unificam o território italiano. O extraordinário romance escrito já no final da sua vida faz-nos pensar como o território onde viveu o centro do poder do que foi um império poderoso e extenso, terminou, como todos os impérios, dividido em fatias que se disputavam entre si e assim permaneceu por quase quinze séculos. A riqueza da escrita de Lampedusa, não só nos cativa como nos entusiasma e enriquece no poder quase mágico como trabalha as palavras e as ideias, como constrói a vida das personagens e as mudanças societais ao nível dos detentores da riqueza. É um tempo de transformação idêntico ao que hoje contemplamos. Quando deixei os jardins do palácio de Lampedusa, subi pela via do Calvário. Procurava um lugar elevado na tentativa de encontrar o mar. Foi na subida que encontrei o centro histórico que procurava, mas em ruínas. Seduzida pelo autor de “O Gattopardo”, nem me ocorreu procurar as linhas históricas do lugar, daí desconhecer que há cinquenta e seis anos um violento tremor de terra arrasou a aldeia de Santa Margherita, talvez daí esta via do Calvário. No ponto alto que procurei pressentia-se o mar quinze quilómetros a Sul, mas não se viam a cor das águas. Para Norte era o desenrolar de pequenas colinas num manto de verde amarelado. Por ali me aquietei, procurando, a Sul, no horizonte directo a imagem de Cartago que os romanos imperiais arrasaram para que nunca voltasse a renascer. Pensar que pese embora toda a evolução da humanidade, dois milénios depois, os Judeus, que ocupam a Palestina, no chamado Estado de Israel, ainda fazem o mesmo e com a mesma impunidade dos imperiais de romanos. Mas Roma caiu um dia. O postal segue quando deixar este lugar.

 

     

 

A EUROPA NUMA ENCRUZILHADA

Manuel Joaquim



 

Hoje ouvi na Antena 1, uma entrevista com um ex-embaixador de Portugal nas Nações Unidas, colaborador do Diário de Notícias e comentador nas TVs, um homem politicamente de direita, a dizer que os políticos estão a governar o país como se fosse uma junta de freguesia.

Numa conferência realizada no dia 25 de Novembro por iniciativa do Núcleo do Porto da Associação Conquistas da Revolução sobre “Revolução e Contra-Revolução no Portugal de Abril”, ouvi a intervenção de um comandante da Armada, participante activo na Revolução de Abril, a dizer que Portugal é considerado ao nível de uma junta de freguesia, sem qualquer importância para as organizações europeias dirigidas por pessoas que não foram e nem são eleitas.

É curioso como um homem estruturalmente de direita, com informações privilegiadas, tem praticamente a mesma opinião que um homem de esquerda sobre a forma da governação de Portugal e da União Europeia.

Portugal está numa encruzilhada e não vai escapar à grave crise que se avizinha, para já, na Europa.

A situação industrial na Europa está a entrar num túnel bastante comprido e escuro.

Uma representante da Comissão de Trabalhadores da VW declarou numa conferência de imprensa que a empresa vai fechar pelo menos três fábricas na Alemanha, demitir 30 mil trabalhadores e reduzir os salários entre 10% e 18%, e que, em 30 de Outubro, a empresa tinha reportado uma quebra nos lucros na ordem dos 64% em termos homólogos, no 3º trimestre. A Míele, uma empresa familiar com 125 anos, com sede na Renânia, anunciou a transferência de parte da sua produção para a Polónia, atingindo 700 postos de trabalho. A Continental vai eliminar 7.000 empregos e fechar fábricas. A Michelin, francesa, vai eliminar 1.500 empregos na Alemanha e fechar fábricas. A empresa ZF, alemã, fornecedora de peças para a indústria automóvel, vai eliminar 14.000 postos de trabalho até ao ano de 2028. A Robert Bosch, na Alemanha, vai eliminar 5.500 postos de trabalho. A ThyssenKrupp, aços, vai eliminar 11.000 postos de trabalho até ao ano 2030, com planos para reduzir a força de trabalho na ordem dos 40%. A ABB, equipamentos eléctricos, empresa sueco-suíça, vai transferir produção para os EUA e investe sobretudo na China e na India.

A Stellantis, grupo auto, França, dirigida até ao presente por um português, já anunciou o encerramento de uma fábrica no Reino Unido, para lá de outras previstas.

Em Portugal muitas pequenas e médias empresas têm desaparecido. Nestes dias foi anunciado que a Coindu, empresa de Arcos de Valdevez, ligada ao sector automóvel, que há poucos meses foi vendida a um grupo italiano, vai encerrar, eliminando 350 postos de trabalho.

Verifica-se a desindustrialização progressiva da Europa, contribuindo para isso o aumento do preço dos combustíveis, a concorrência cada vez maior de outros produtores, que é acompanhada por uma crise imobiliária a nível geral, do aumento do custo de vida, pelos baixos salários e a falta de emprego.  

Os problemas que se acentuam na educação, na saúde, nas condições de vida, com uma guerra na Europa que parece não ter fim, e que alguns defendem que deve prosseguir, falando já em serviço militar obrigatório com a intenção de mandar os jovens para a guerra, desde que não sejam os filhos deles, claro, está a provocar desconfianças crescentes nas populações.

O 25 de Abril acabou com a guerra colonial, onde morreram milhares de jovens e muitos mais ficaram estropiados e destruídas muitas famílias. Passados 50 anos há indivíduos que defendem a manutenção da guerra em defesa de que interesses?

Na Europa, há oitenta anos, morreram milhões de pessoas na guerra. Os países que sofreram directamente a guerra tiveram destruições com consequências terríveis para as respectivas populações. Nos últimos tempos, ouve-se cada vez mais a falar na 3ª guerra mundial. O próprio Papa, já referiu que já estamos na 3ª guerra mundial. Dirigentes mundiais de quem depende a guerra ou a paz falam em armas nucleares e na 3ª guerra mundial. Países do norte da Europa distribuem papéis com instruções sobre uma possível guerra nuclear, instalando o medo nas populações.

Um major-general português, transmontano mas a viver na linha de Cascais, comentador da CNN, em tempos disse que a indústria de armamento da Rússia estava ultrapassada, pois estava a montar armas com chips que obtinha de máquinas de lavar por não ter capacidade para os fabricar, usando as mesmas palavras da presidente alemã da EU. O mesmo general disse há uns tempos que os soldados russos aprendiam a usar as armas através da internet e que nem tinham meias para calçar com as botas, um país destinado a ser destruído. Sobre decisões de Putin, referiu-se que ele era um mau jogador de xadrez e que por isso iria perder a guerra. No passado dia 18 de Novembro, na CNN, em resposta a uma questão apresentada pela jornalista sobre palavras de Putin sobre armas nucleares e 3ª guerra mundial, respondeu: “3ª guerra mundial? Dá-me vontade de rir. Deve ser para crianças pequeninas acreditarem neste tipo de narrativa”. Sobre o lançamento do novo míssil russo, disse que era uma simples actualização de outros e que tinha materiais de origem suíça. É um homem com informações altamente privilegiadas, pois só passados alguns dias é que foram recuperados destroços do tal míssil, conforme foi noticiado.

Hoje, o mesmo major-general, numa entrevista que deu a uma publicação disse que Portugal está muito atrasado na criação de defesas para um eventual ataque nuclear dizendo que é possível acontecer. Não sei se passou a ser uma criança pequenina para acreditar nessa narrativa. É com gente desta que as pessoas são esclarecidas sobre o que realmente se está a passar.

Gente deste jaez estavam à espera que a mãe natal lhes saísse nas eleições americanas. Saiu o que eles não queriam.

Para meditar e perceber porque não saiu a mãe natal é bom conhecer as palavras de um político do partido democrata, Senador Bernie Sanders, após os resultados eleitorais:

Não devemos ficar muito surpresos que um partido democrata que abandonou a classe trabalhadora descubra que a classe trabalhadora o abandonou”

 


 

NADA DE NOVO DEBAIXO DO SOL

Mário Martins


“A mesma peça. Elenco diferente.”

Imperador romano Marco Aurélio, Meditações, Séc. II

 

Irene Valejjo, uma escritora espanhola que a publicação do seu aclamado livro “O Infinito num Junco”, pelo qual recebeu em 2020 o Prémio Nacional de Literatura de Espanha, trouxe à ribalta literária, dera à estampa, em 2017, um ensaio sobre o mundo actual à luz da sabedoria da Antiguidade Clássica (nas palavras da editora), o qual reúne colunas publicadas no periódico Heraldo de Aragón, e a cuja compilação deu o sugestivo título “Alguém Falou sobre Nós”.

Como se diz agora, o mundo está do avesso. Depois de uma relativa acalmia proporcionada pelo “equilíbrio do terror”, a ampliação da percepção dos acontecimentos do mundo político-social de hoje, alimentada pela (des)informação constante e pela sedução da imagem, torna o presente de certo modo incomparável com o passado.

Em todo o caso, é inegável que, para lá do agravamento climático o qual, por variadas razões, não conseguimos suster, atravessamos um período de grande instabilidade, marcado por disputas territoriais, guerra, sofrimento e morte, pelo total desrespeito pelas normas internacionais, pela reacção às migrações, por uma escandalosa concentração da riqueza, pela absoluta primazia do interesse nacional, pela deliberada confusão entre o verdadeiro e o falso, pelo enfraquecimento da democracia política. Nas condições actuais, o presente é caótico e o futuro uma ameaça.

Isto é novo? Para a autora, “uma apaixonada pela mitologia grega e romana”, muitos tipos de acontecimentos negativos de hoje permeavam o esplendor das sociedades da Grécia e Roma antigas. A crítica e a sátira mais corrosiva de poetas indignados, como o romano Juvenal no séc. II, ou as teses e avisos de filósofos como o grego Aristóteles, há quase 2400 anos, são, de resto, prova evidente disso.

Algumas das situações que a autora descreve soam bem familiares:

“O célebre líder político Péricles gabava-se de Atenas ser uma cidade aberta onde não se expulsava os estrangeiros (…) No entanto, apesar das suas proclamações, o próprio Péricles aprovou uma lei restritiva que limitava a cidadania a quem tivesse pai e mãe atenienses (…) Ironia do destino, alguns anos mais tarde, Péricles apaixonou-se por uma mulher nascida na actual Turquia, a extraordinária Aspásia. Devido à reforma legal que ele próprio tinha impulsionado, o filho de ambos foi considerado um estrangeiro na sua cidade natal (…)”

Dois poetas romanos amigos, Marcial e Juvenal, “descreveram a inverosímil opulência da qual alguns cidadãos abastados se gabavam e, ao seu lado, as misérias de muitos romanos que sofriam a carestia da vida (…)”

A especulação imobiliária e os despropósitos da construção não são um flagelo explosivo do presente. A Roma Imperial conheceu a sua própria bolha, devido â qual a cidade vivia quase suspensa no ar, pois a ânsia pelo lucro levava a elevar cada vez mais os edifícios. Nestes arranha-céus antigos, construtores e empreiteiros economizavam o máximo possível reduzindo a resistência da obra e baixando a qualidade dos materiais. Os lucros eram fabulosos e os desmoronamentos numerosos (…)”

Corrupção é uma palavra que vem do latim e que significa «unir-se para infringir» (…) Montesquieu escreveu que foi Júlio César quem generalizou o hábito de corromper como mecanismo de financiamento político. As despesas eleitorais em Roma antes da era da publicidade e das aparições na televisão já eram enormes. Júlio César financiou a sua campanha para o consulado recorrendo aos fundos do rico construtor Crasso, a quem recompensou depois com contratos públicos (…)”

Segundo Aristóteles, cada sistema político tem um risco característico que habita no seu seio e ameaça fazê-lo fracassar. No caso da democracia, esse perigo chama-se demagogia, uma antiga palavra grega que significa «arrastar o povo», a qual descreve uma forma de governar na qual os argumentos são substituídos por apelos aos medos, preconceitos, amores e ódios dos cidadãos, constituindo-se como a «forma corrupta ou deteriorada da democracia» (…)”

Poderíamos acrescentar que “Na Roma antiga, um homem rico, para além de terras e de escravos (e também de um filósofo privado…), tinha uma clientela. Todos eles deviam visitar o seu patrono (…) numa mostra de adulação chamada cumprimento matinal (…) Em troca, conseguiam (…) um salário mínimo mensal que os ajudava a subsistir. Se não quisessem voltar com as mãos vazias, deviam chamar senhor ao patrono, precursor dos nossos modernos caciques. Esperava-se que o escoltassem quando ia tratar dos seus assuntos, que obedecessem às suas ordens e que votassem segundo as suas instruções. No meio desta parafernália de favores, servilismos e elogios, as assembleias e votações derivavam num mero simulacro (…)”

Como diz Margaret Atwood, escritora canadiana, recentemente citada por Henrique Raposo na revista do Expresso, “a história não se repete ipsis verbis, mas faz rimas numa cadência muito certa.”

Qualquer que tenha sido o sentido exacto da famosa frase “Não há nada de novo debaixo do sol”, que terá sido enunciada há cerca de 3000 anos pelo Rei Salomão e é citada no Ecclesiastes, ela retrata bem a constância fundamental do comportamento humano ao longo das épocas passadas, presente e, sem grande risco de nos enganarmos, futuras.

 

POESIA

Helena Serôdio

 

INSÓNIA

 

 
A madrugada modelou o teu corpo subtil,
Translucido,
E eu dei-lhe a forma dos teus braços.
O sol esculpiu o teu rosto na face da aurora,
Em que os teus olhos imensos,
Plácidos como duas ilhas flutuantes,
Vogavam ao sabor da brisa….
E eu acendi astros no teu olhar,
Bebi dos teus lábios o orvalho da manhã
E devassei  o teu ser
Como se profanasse um templo…
Mas só quando tentei reter a imaterialidade das tuas mãos diáfanas
Vi que tu eras apenas uma nuvem
Imóvel no espaço,
Levada pelo vento,
Que eu cingira ao peito,
Beijando nela a tua boca 
E possuindo a tua imagem reflectida num espelho!...


DERROCADA

 

Volto todos os dias 
À terra da frustração
Depois de pairar
Montada no alado corcel do sonho.
Cansada do voo,
Cansada da terra,
Quedo-me...
Desço em mim
E não me encontro
Neste profundo poço do meu ser.
Sou como torre que tocou as núvens
E que lentamente se desfez
Ao ritmo do tempo.

01/11/24

208

ALEGRE

Mário Martins





As memórias de Manuel Alegre, agora com 88 anos, dadas à estampa este ano, revelam uma personalidade rara, decerto desconhecida, pelo menos parcialmente, do cidadão comum.

É, de facto, surpreendente, a combinação do homem corajoso e de acção política que sempre foi, - na luta contra a ditadura e a guerra colonial (para onde foi destacado, por pressão da Pide), e pagando, por isso, com as perseguições e prisão pela polícia política e o exílio de dez anos, e na defesa da liberdade e do progresso social no regime democrático, sofrendo incompreensões de vária ordem, confundindo, de tal modo, a sua vida com a evolução do país nas últimas seis décadas, - com as facetas de desportista campeão de natação, que também foi, e de amante da caça e da pesca, além do tiro, que ainda será, ou com os dons da oratória incisiva, da poesia e da escrita, e até de uma certa sensibilidade mística que perpassa nas suas memórias.

O livro abre com um episódio trágico: “A 16 de Maio de 1828, os liberais de Aveiro revoltaram-se contra o decreto em que D. Miguel convocava Cortes para se proclamar rei absoluto. A revolução foi dirigida pelo desembargador José Joaquim de Queiroz, avô de Eça de Queiroz. Nela estiveram envolvidos meu trisavô Francisco da Silva Melo Soares de Freitas, futuro visconde do Barreiro, e seu irmão Clemente. Francisco conseguiu escapar para o Brasil após o triunfo das tropas miguelistas. Mas Clemente foi apanhado de armas na mão a defender as linhas liberais. Seria preso, enforcado e decapitado na Praça Nova, no Porto, juntamente com três ilustres aveirenses, enquanto frades e damas miguelistas bebiam cálices de Porto (…) As cabeças cortadas foram transportadas para Ovar, daí para Aveiro e espetadas em paus à frente das casas de família (…)” 

Tenho tentado ser fiel a esta herança, diz Alegre. “Talvez ela ajude a compreender melhor a minha oposição a todos os absolutismos e a todas as formas de ditadura.”

A fechar, após confessar que a vida partidária deixou de o interessar, e considerar que se a experiência socialista falhou, a pergunta permanece sobre a injustiça do capitalismo, Alegre sustenta que para “decifrar a imprevisibilidade de um Mundo virado do avesso, seria preciso uma nova vidência poética. Mas as musas gregas estão feridas. O anjo de Rilke está fechado em Duíno. E o duende de Lorca não aparece nos rebordos dos lábios que sangram (…)”

Mais do que de economistas, este é um tempo que precisa de filósofos, poetas e profetas. Mesmo que a folha branca seja o deserto em que têm de pregar contra o ruído do Mundo – em busca da música perdida.”

Assim falou o poeta…



NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


Agia Sophia



Roma. Outono. Não estranhes se encontrares melancolia neste postal. Se tal acontecer é uma mistura de cansaço e tristeza pelos dias se extinguirem a meio da tarde, mesmo aqui tão próximo do Mediterrâneo. Percebi este sentimento contraditório ao atravessar a Piazza Navona e ao escutar as águas tombarem saltando pelo branco marmóreo da Fontana dei Quattro Fiumi. Trouxeram-me à memória o som constante que ouvimos nas Terras Altas da Escócia quando no fim da Primavera o aquecimento rebenta com o gelo que cobre as águas contidas e estas correm apressadas para o seu destino. Lembrei as palavras de Sophia a um dos seus filhos quando nesta praça deixava o tempo deslizar e aquele se impacientava, «tem calma, antes de vermos temos de observar». Fiz os possíveis por não me apressar. Queria que o olhar vadiasse sem tempo pelas ruas da antiga capital do império. Assim segui até à ponte de Vittorio Emanuele II, junto ao castelo de Sant’Angelo. Já antes ao atravessar a Piazza Venezia e admirar o Altar da Pátria me encontrara com este rei e a sua lembrança leva-me até Verdi. A rebeldia dos combatentes da liberdade por uma Itália unificada assumiu a grandeza da criatividade. Enquanto revivia os sons de Nabuco, dizia para mim mesma, quem diria, o grito da Itália no nome de Verdi (Vittorio Emanuele Rei D’Itália). Como corriam os austríacos imperiais apagando o nome de Verdi das paredes das ruas do Norte de Itália. Mal sabiam que se pode prender as pessoas, mas nunca o pensamento. A Via della Conziliazione conduz-nos em linha recta à Piazza de San Pietro. Entramos na Cidade do Vaticano onde não alcança o poder do Estado italiano. É um cerco sem fronteiras. Rodeamos a praça e entramos de olhar aberto na Basílica. Os olhos detêm-se por momentos na Pietà mas são impelidos, atraídos para cima. É nas paredes e nos tectos que se encontra a grandeza dos terrenos como oferenda aos céus, a Deus. Tudo é volume, exagero, as artes excedem-se na representação, mas quando alcançamos o cruzeiro e o olhar se prende nos transeptos e no interior da cúpula aparece um sentimento de fragilidade perante o poderio que nos esmaga. Alguém murmura ao meu lado, «aqui se compreende o poder da Igreja». De certa forma, a arquitectura parece austera e ao mesmo tempo, poderosa, esmagadora. A cúpula de Santa Maria del Fiore em Florença aparece-nos com magnitude semelhante, sem austeridade, mas mais simples, mais bela. Como a descreveu no domínio da intenção, o notário Ser Mino de Cantoribus, que "a indústria e o poder do homem não pudessem inventar ou mesmo tentar nada maior ou mais belo". Realçava, portanto, a arte, a beleza. Agia Sophia, nascera mil anos antes desta Basílica de São Pedro e também ela queria demonstrar a ostentação de poder, riqueza, domínio, mas demonstraram tudo isto pela beleza e a arte. Quando o Império do Oriente sobrevivia ao declínio do Ocidente, Agia Sophia erguia-se para provar que haveriam ainda mais de mil anos imperiais. Não sei se foi com essa intenção, mas em Agia Sophia, tudo é luz, tudo é arte, tudo é beleza. As cores são claras, vibrantes, apelativas e atraem a luz que penetra por todas as aberturas. Pode-se sentir essa máxima cristã de que Deus está em todo o lado. Cinco séculos depois as catedrais góticas vão tentar captar esta luz que jorra do céu, mas sem o mesmo esplendor. Agia Sophia é única e inimitável. Mas em S. Pedro, em pleno século XVI, o que se pretende é não deixar dúvidas sobre o poder, de Deus naturalmente segundo o poder cristão, mas na verdade, servindo o poder da terra. Pensar que mil anos antes, o Cristianismo caminhava nos tuneis do desaparecimento com a repressão imperial a decapitar a sua intelectualidade. E é Constantino após a vitória sobre Magêncio que tem uma decisão que altera e vai definir decisivamente o rumo da Cristandade. Com o Édito de 313 os cristãos passam a ser livres de professar a sua fé. No momento em que o império declina, o Cristianismo vai expandir-se. Constantino unifica o império pela última vez e nos arredores de Constantinopla, reúne o Concílio de Niceia, no qual estará presente e onde, perante a auréola que vê tentarem colocar-lhe, diz que não é Deus. No entanto, Eusébio de Cesareia, o primeiro historiador a escrever uma história global do ponto de vista cristão, dir-lhe-á, não és Deus, mas és imperador pela vontade de Deus. Não é porque que quer, mas porque Deus o exige. Será este Eusébio que estabelecerá uma relação entre o aparecimento de Deus a Constantino na véspera da batalha contra Magêncio que ditou a vitória e o entronizou como imperador, daí a mudança do seu comportamento em relação aos cristãos. Oitocentos anos mais tarde, os crúzios de Santa Cruz de Coimbra, vão construir uma história semelhante na invenção da batalha de Ourique em que Deus apareceu a D. Afonso Henriques para lhe dizer, vencerás e serás rei por minha vontade. O Império Romano tombaria definitivamente no século XV, mas a Igreja continuaria, pese embora, as crises que sempre atravessa. Deus é uma ideia interior enquanto os impérios não passam de um poder terreno de ganância, luxúria, desigualdade, infâmia, em suma, arrastam consigo uma cartilha de maldades. Desço pela Via del Penitenzieri e di Porta de Santo Spirito até ao Tibre. Sigo pela margem e sento-me nos jardins de Sant’Angelo ou como lhe chamam, Parco della Mole Adriana. É um lugar calmo, rareiam as gentes e deixo-me ficar a pensar no tempo que vivemos. Se aqui estivesses talvez te dissesse que por vezes a vida é um absurdo, pois sendo tão curta, não deixa de ser como os impérios e destes apenas fica na História o relato das maldades dos que mandaram e pareceram um dia deuses na terra, mas na verdade nunca passaram de um grão de areia nesse mundo de milhões e milhões que viveram antes deles e de outros milhões e milhões que viverão depois deles. Neste tempo que vivemos, outro império se desmorona com ruído e como todos os que o antecederam, vai deixando um rasto de destruição e sangue. Haverá sempre quem não desista de os combater como os heroicos árabes que na Palestina e no Líbano me fazem lembrar os imortais de Dario. Declina a tarde com melancolia, mas ao contrário dos impérios, quando morrem, na vida, novo dia há-de renascer. O postal segue no próximo correio.
     

JOGO ORÇAMENTAL

Manuel Joaquim



Durante semanas fomos bombardeados com notícias sobre o orçamento para 2025. Linhas vermelhas, percentagens, aumentos salariais e das reformas, bonificações, isenções e benefícios fiscais, foi o que ouvimos e lemos durante largos dias. Sobre o conteúdo do próprio documento ninguém falava, ou por ainda não ter sido publicado ou por reserva política ou mental sobre o mesmo. Uma força política declarou logo de início que ia votar contra o orçamento. Outra força política declarou que não entraria em negociações, que era contra e que a sua posição era irrevogável. Mais tarde declarou que fez cinco reuniões com o primeiro-ministro, (este confirmou duas), e que este tinha-lhe até prometido lugares num futuro governo. Outras entraram em negociações. Uma delas protagonizou todo o espaço de negociação com o governo, um verdadeiro folhetim de declarações dizendo que era contra o orçamento por ser muito mau por aquilo que tinha por aquilo que não tinha. 

Todos os comentadeiros de serviço e o MAIOR, cumprindo instruções dos seus alimentadores, defendiam a passagem do orçamento sob pena de ser o caos para o país pois tinham ouvido todos os portugueses e que estes não queriam eleições, pretendendo condicionar a decisão do negócio.

Antes da data marcada para anunciar a decisão, o maior desta força política, veio anunciar que, não obstante o orçamento ser muito mau para o país e para os portugueses, propunha a abstenção. Provavelmente uma abstenção violenta tal como aconteceu com a mesma força política em 2011. Segue a mesma linha de há muitos anos.

Um amigo meu escreveu que “o grandalhão é grande mas não é grande coisa”


POESIA

Helena Serôdio





CONSUBSTANCIAÇÃO



Criei-te belo,
Viril,
Perfeito.
E voaste do meu pensamento
Com possantes asas de condor,
Garras de águia com dedos de flores,
Olhos de abismo,
Corpo e alma livres como o vento!

Não sei se tu existes
Ou se vives só dentro de mim.
Mas o meu olhar é espelho da tua imagem,
Na minha boca fala o teu silêncio,
Nas minhas mãos vibram os teus gestos!

Em ti começa e acaba o que não tem fim... 

Tu só és real quando te corporizas em música 
E dela se evola a tua presença.
Quando
Os teus braços se estendem para a minha fragilidade
E a firmeza dos teus pulsos me sustém.
Quando
O teu sorriso se enflora como um jardim
E num cântico de ave
A tua voz incendeia os meus ouvidos.
Quando
O sonho é uma fuga para o espaço
Que nos leva a um paraíso interdito
E tu trazes o perfume da noite
Em que hei-de morrer contigo.
Quando
Há uma pausa esquecida no tempo
E num breve interlúdio de amor
A tua sombra se une à minha.
Quando,
Súbitamente,
O teu beijo perpetua esse instante
E o instante eterniza a minha vida!...

O TESTAMENTO DE COPPOLA

António Mesquita




Na fábula que Francis Ford Coppola  construiu sobre a América dos dias de hoje, assistimos a uma reinterpretação da história da Antiga Roma. Porém, não devemos esperar que Cícero ou Tito Lívio nos ensinem alguma coisa sobre o filme. 

O homem que aparece aqui com uma visão de futuro, do lado certo, portanto, Lúcio Sérgio Catalina de seu nome, é um conspirador perigoso para Marco Túlio Cícero. "Até quando, ó Catilina, abusarás tu da nossa paciência?" é mesmo uma das mais famosas citações da oratória romana. Mas, a favor de Coppola, está o facto dos historiadores só terem a  versão ciceroniana. Catilina poderia, talvez, ter evitado Augusto e o  fim da república.

O domínio mundial  da nação fundada por Eneias foi um dos mais longevos da história e o império  que se seguiu ao assassinato de César e à derrocada das instituições republicanas foi o princípio do fim. O  "império" americano está longe de poder sustentar essa comparação.

Digamos que para a figura da fábula isso é irrelevante. Dos sinais que parecem destinar a nação americana e o seu "império" a um rápido declínio, nenhum é tão importante como o fenómeno Trump. Aliás, o assalto ao Capitólio de 6 de Janeiro de 2021 tem uma alusão clara no filme. E a identificação do homem do MAGA com a ideologia fascista é feita, dum modo rebarbativo com imagens de Hitler e de Mussolini. A expressão "que se mete pelos olhos dentro" podia aplicar-se, também, às liberdades formais do realizador, como o écrã tripartido,  ou às incoerências  da narrativa. Como um vinho velho, o filme de Coppola e a sua direcção podem apresentar sedimentos. Nada disso diminui o interesse de "Megalópolis". A sua dramaturgia revisita a cultura latina com um 'flair' que nos habituamos a esperar do autor de "Apocalypse Now".

A tecnologia, longe de ser diabolizada, aparece aqui associada às chances dum futuro possível, quase radioso, a julgar pelo final feliz da fábula. Catilina, no filme, é um arquitecto ambicioso e pretende fundar a nova cidade de Nova Iorque com um material revolucionário chamado Megalon, que lhe permite controlar o espaço e o tempo. Como estamos longe disso! E, no entanto, o que promete a Inteligência Articial não é menos revolucionário.

É  curioso que uma das causas identificada, por exemplo, por Montesquieu, como na origem da decadência do império romano, a  adulteração do moral do exército e da sociedade pela inclusão de outros povos (os bárbaros) na cidadania romana, esteja hoje no  centro do turbilhão político americano e europeu, através do populismo e da extrema direita.

Em entrevista, Coppola disse: “Agora, a América é Roma e estamos prestes a passar pela mesma experiência, pelas mesmas razões que Roma perdeu a sua república e acabou com um imperador”.

Mas Roma deu lugar ao feudalismo e à Idade Média (das trevas, para alguns). FFC parece acreditar que a tecnologia nos pode livrar disso, associada ao poder nas mãos dum Catilina. Não é por acaso que esta encarnação moderna de Lúcio Sérgio é arquitecto. A sua visão para a Nova Roma  era já a do romance de Any Rand, "Fountainhead", que também inspirou um filme, com Gary Cooper, em 1949, a King Vidor. A democracia, neste aglomerado de tecnologia e arquitectura utópica não estaria longe, talvez, de uma nova Idade Média, com os seus feudos e a sua descentralização. Não é Varoufakis que fala num novo feudalismo que já definiria o nosso mundo, em termos económicos?

Podia dizer-se que um filme tão desigual e que tanto divide a crítica é um parco resultado para os 120 milhões que dizem que Coppola investiu nele. Mas é um testamento  que exprime a confusão dos tempos e não desonra o autor do "Apocalypse Now".

01/10/24

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NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva




Florença, Junho. Envio-te novo postal. Desci pela costa, vagarosa e de olhar perdido. Não queria ficar e não tinha pressa de chegar. Deixei-me ir pelos dias de sol que me foram recebendo. Havia em mim uma mistura de ansiedade, de surpresa, de receio, como naqueles momentos em que nos preparamos para conhecer alguém e tememos que a realidade não corresponda à imagem que construímos antecipadamente, em alguns casos, como agora, há muito tempo enriquecida pela imaginação. Em Ravena dirigi-me para o interior, embrenhando-me na Emília-Romagna e na Toscânia. Entrei lentamente, como se levasse os olhos fechados e tivesse medo de não encontrar o que procurava. Abri-os quando me sentei num dos recantos do Giardino Bardini. Alheei-me do que me rodeava e, por fim, deixei que o olhar se abrisse para o horizonte que se estendia como uma planície. Estava tudo na minha frente e era real, até a tonalidade que cobria as pedras, os telhados, as paredes, as folhas, as árvores, apareciam como nas pinturas que tanto contemplara em madrugadas de sonho. O Arno, a Ponte Vecchio, a Campanile di Giotto e a extraordinária cúpula de Brunelleschi em Santa Maria del Fiore, a Torre de la Signoria, a Basílica de Santa Croce. A imaginação arrasta-me em viagem, desfolha-me os pensamentos, navega pela História, pelo tempo pretérito, pela soma dos dias que permitiram que os meus olhos pudessem agora apreciar a beleza construída em cima de séculos que, parecendo idílicos, guardaram poderes malignos, avarezas insuportáveis e misérias humanas sem limite. Mas ao mesmo tempo que o presente nos traz o belo secular, permite que nos rebente sobre o pensamento a violência modernizada, arrasadora nas suas explosões, ainda mais intolerável nos seus crimes. É o declinar de um mundo colonial que espoliou os povos ao longo de cinco séculos. A humanidade que constrói lugares e espaços que nos permitem o êxtase perante a magnitude do seu esforço, não impede que nos seus actos mais pérfidos seja capaz de reduzir a escombros, sejam monumentais obras de arte ou simples habitações de viver e, ontem como hoje, servindo-se de um Deus como protecção justificativa de tamanhas maldades e alguns desses criminosos são recebidos como pequenos deuses em areópagos mundiais debaixo de salvas de palmas daqueles que lhes encheram as mãos de pedras para as soltarem em gritos de selvajaria e de infâmia. Regresso a este jardim de encantado verde vigiando Florença e início a descida para me aproximar dos espaços que os olhos há tanto tempo imaginaram e construíram em sonhos, mas agora sem o temor de poder não encontrar o que tanto desejei. Caminho com essas demoras de quem não tem destino nem horário. Na Piazza di Santa Maria Soprano aproximo-me do Arno e deixo-me enlevar pelas águas que se movem ainda mais lentas do que o ritmo dos meus passos. Paro na entrada da Ponte Vecchio e não consigo esconder o sorriso que me enche a alma, pelo fascínio deste lugar tão ansiado e tão intensamente concebido. É como desembrulhar um presente que nos trazem, não sabemos o que é, mas apressamo-nos em descobrir desejando que seja algo que muito gostamos, mas sem sequer sabermos o que verdadeiramente queremos que seja. Percorro a Piazzale degli Uffizi com a solenidade de quem presta uma homenagem ao passado e à humanidade. Lembro-me do poema a Galileu e como o recitávamos juntos naquela parte em que o Mestre dizia a tudo que sim, que sim senhor, que era como suas eminências diziam, “Estava agora a lembrar-me, Galileo, daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo e tinhas à tua frente um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo a olharem-te severamente. (…) que o sol era quadrado e a Lua pentagonal e que os astros bailavam e entoavam à meia-noite louvores à harmonia universal.” E no final ríamo-nos, não do pensamento humano da época, mas das resistências que a ciência tem sempre de ultrapassar e vencer. Entro na Piazza della Signoria e sento-me nas breves escadas frente ao Palácio Vecchio. Espanto-me no volume da sua grandeza, da sua imponência. A sua torre soberba em pedra trabalhada com a sua varanda extravasando os limites das paredes, erguia-se já acima da Campanile di Giotto e igualava a cúpula de Brunelleschi. Era o desafio do poder profano sobre o religioso. Ainda não o ultrapassava, mas a posição que assumia já não permitia dúvidas. O poder económico das famílias burguesas e mercantis de Firenze reclamavam o que consideravam seu como de direito. Sabes como gosto de viajar sozinha, mas nestes lugares, nestes momentos, nestes espaços de reflexão como este onde me encontro na Piazza della Signoria, procuro-te como conforto, como amparo desta fragilidade que sinto na imensidão deste poderio que os olhos vêem e a alma sente. Caminho já no dealbar da tarde até à Piazza de San Giovanni. Santa Maria del Fiore está encerrada, o Battistério de San Giovanni também. Detenho o olhar na Porta del Paradiso e permito que as ideias fluam como uma barca num rio de águas calmas. Uma música lenta e um canto triste chegam no rumor de um crepúsculo que se aproxima. Sinto-me como se ainda fosse possível ver os Médicis entrar em Santa Maria para se despedirem de um dos seus cuja vida terminou num assassínio mortífero. Ontem como hoje eram as lutas perversas por um poder onde sobrava a ganância e a inveja e tanto carecia de justiça e de igualdade. As luzes acendem-se e fazem brilhar o lajedo das ruas de Florença. O dia partiu e a noite chegou. O postal segue em breve.
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