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01/12/23

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva


https://www.sjpesqueira.pt/pages/1243



Deixamos a pequena vila de S. João da Pesqueira já tarde. O sono enrolou-se em nós com esse aconchego que os dias de outono trazem. Mas estava limpa, a manhã. O sol possuía a fragilidade dos dias curtos e das manhãs serenas, mas o céu tinha um azul claro e as nuvens viajavam por outros caminhos. Os habitantes desta vila não chegam aos três mil, mas aqui vive o concelho mais antigo do país, desde 1055 ainda a nação era apenas um sonho e o reino era como uma criança ainda por nascer. As palavras ligam sempre o rio ao vinho, ao generoso e ao outro, mas é aqui em S. João que encontramos o centro, ou o coração como nos lembram as placas estradais, da produção do vinho do Porto. Por aqui viveu uns tempos o Marquês de Pombal e, talvez por essa razão, a sua atenção aqui se deteve para criar a primeira região demarcada. A N222 rasga sem ferir o planalto e apresenta agora um traçado suave permitindo um deslizar silencioso como se desejasse que não se acorde a paisagem. Viajamos como se planássemos sobre esta natureza de verde e cor da terra, verde que se foi queimando entre vermelhos e amarelos acobreados, neste intervalo entre o calor e o frio. Desviamos para Trevões a pequena aldeia onde reside o património arquitectónico referenciado no concelho. Estamos agora sobre a N229 que nos levaria a Penedono se o nosso destino não fosse outro, mas Penedono com o seu castelo singular conduz-nos a outras recordações distantes no tempo e na memória. Trevões não é propriamente dessas aldeias que nos cativam, mas apresenta a brancura dos pequenos lugares desviados das grandes rotas, mas quanto ao cativar talvez nos equivoquemos. Sentimos o engano quando penetramos nas suas ruas e nos deixamos ir, sem caminhar, como se nos empurrasse uma ligeira brisa. Trevões tem uma história medieval e dos princípios da nacionalidade. Sentimo-lo como sentiríamos o ar das cidades medievas e ainda persistem os sons dos artesãos cuja arte dava nomes às ruas. Parece silenciosa a aldeia nesse adormecer do meio do dia, mas se deixarmos o olhar fluir vamos encontrar o que não procurávamos e quase desaproveitámos o que sabíamos existir. Afinal poderíamos perder-nos por aqui dias até compreender um esboço secular deste espaço rural. Este devaneio levou-nos com leveza até à igreja matriz de Santa Marinha com aspectos ainda visíveis de quando os canteiros começaram a unir as pedras nesses séculos XII e XIII que se alongaram pelos séculos seguintes, XIV e XV, como os restos do gótico final nos parecem dizer e pelo XVIII ainda lhe anexaram a torre sineira. São pedras que nos murmuram uma longa vida resistindo aos ventos, ao calor e ao frio. O Solar dos Melos não nos atrai porque nos catapulta para a época do barroco, embora a construção seja do século XVII. No século XVIII, as obras foram de vulto e deram-lhe muita da aparência actual. Outra referência que nos acompanhava tinha a ver com o Solar Episcopal mandado construir pelo Bispo de Lamego já na parte final do século XVIII. Podemos dizer que vale pelo brasão incrustado na frontaria. Quando os passos nos encaminhavam para a despedida apercebemo-nos da existência de dois museus, um etnográfico e um outro de arte sacra e religiosa que se tornam de visita obrigatória. Trevões tem ainda mais para visitar mas a N222 aguarda-nos pelo que assumimos o caminho inverso que até Trevões nos tinha trazido. Dez quilómetros volvidos e reencontramos a nossa estrada para prosseguir em direcção a Leste. Leva-nos a cadência da sonolência da tarde e começamos a sentir chegar essa sensação de cansaço de quem há muito viaja e começa a sentir necessidade de regressar ao amparo do lugar onde se vive, da vivência das pequenas coisas do quotidiano como nos falou em determinado momento das suas “Ilhas Desconhecidas”, Raul Brandão. O escritor portuense descrevia com perfeição tudo que lhe fazia falta num ambiente tão afastado daquele que lhe era querido. Talvez por isso, resistimos à tentação de entrar na aldeia de Horta do Douro para perceber a razão de existir um avião de combate exposto numa das suas ruas cêntricas. Na Teja, rumamos à esquerda em direcção a Numão. Continuamos a penetrar na vivência da Idade Média, embora o lugar nos permita recuar ainda muito mais no tempo, mas hoje seguimos directos ao castelo. Subimos com vagar pese embora a tarde fosse deslizando para o fim. Numa das torres da muralha pudemos olhar prazenteiramente o horizonte envolvente até onde os olhos abarcavam. Notamos que no azul que cobria a paisagem apareceram restos de nuvens esfrangalhadas e sem razão aparente, ou talvez por isso, ocorreu-nos à memória uma frase lida, “Uma nuvem começou a cobrir o sol lentamente, por inteiro, sombreando a baía em verde mais profundo. Jazia atrás dele uma taça de águas amargas”[1].O Douro não tem as águas amargas, se as teve foi já noutra época, hoje cativa-nos, chama-nos, como nos apela agora que baixemos até à Ferragosa e já não sabemos se temos saudade do rio ou do comboio já que ambos se confundem até ao Pocinho, nessa companhia que já leva muito mais de um século. Vê-lo-emos para lá de Vila Nova, mas será para depois. Hoje aguardaremos pela chegada da hora crepuscular entre as pedras que muralham este cabeço acima de Numão.


[1] James Joyce em “Ulisses”, Livros do Brasil, Lisboa, Abril de 2000

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