01/12/22
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
O primeiro terço do trajecto sempre foi percorrido de forma breve, quase sem nos apercebermos dos territórios envolventes. Após a cidade maior a estrada já tantas vezes fora por nós viajada que a memória perdera o registo. Entretínhamo-nos a rever o mundo e as suas notícias enquanto subíamos numa sucessão de curvas e lugares. Houve sempre uma paragem para um café, antes de abordarmos a segunda parte do percurso. Começavam então a ficar visíveis os picos graníticos da montanha do outro lado do Cávado. Destacando-se na retaguarda da vegetação e das aldeias, sucediam-se com uma grandeza atemorizadora e quase impossível de alcançar. Olhávamos com enlevo os recortes cinzentos que pareciam tocar as nuvens. Na parte final do caminho, sentíamos esse apelo que carrega o prazer de jornadear por trilhos e veredas num misto de liberdade e distância da mundanidade. Quando o nosso olhar pousava sobre o lago de água contido no perímetro da albufeira, algo começava a mudar nas nossas emoções. Passávamos a pequena aldeia com a sua vetusta capela em pedra e a torre sineira lateral e quase logo, vislumbrávamos o pequeno e longínquo ponto branco, como um marco reluzente, que se destacava nos cinzentos acastanhados da pedra. Alguns quilómetros depois iniciávamos a subida que nos conduziria aos mais de mil metros de altitude. Verdadeiramente era esse o momento em que algo em nós se começava a transformar, a expandir para além de sentimentos incomensuráveis. A beleza do planalto com as suas ervas rebeldes entre o verde e o amarelo, a sua extensão de horizonte que parece raiar o infinito, a estrada como um traço que se alonga para além do que o olhar alcança, o seu silêncio dormente, colocava a memória num êxtase que transbordava o presente. Era nesse instante que, como um movimento apaziguador, me aparecia a música de Savall celebrando as exéquias dos Médicis. Eram sons serenos, profundos que penetravam como um bálsamo de enlevo deixando-me a deslizar sem tempo e sem idade. Surgiam na perspectiva do olhar imaginado, as ruas de Florença invadidas por uma tristeza plúmbea, por cânticos de prece e dor, de lágrimas silenciosas de raiva e pesar, as belas paredes de Santa Maria del Fiori, estremecendo com o murmúrio pesado dos mantos de padecimento, amparavam no seu interior os apelos à intervenção divina. Atravessávamos o planalto na dolência dessa música que nos transportava para as ondas de choque que cobriram as ruas empedradas da cidade toscana, tanto como aquelas que acompanharam as exéquias fúnebres do rei de Boa Memória, nas ruas mouriscas de Lisboa entre círios e velas. Sentíamos uma espécie de conforto que nos invadia a alma e não nos abandonaria nas horas seguintes. Envoltos nessa névoa de fantasia, atravessávamos a aldeia alcandorada nos mil e cem metros da montanha, voltada para o vale como afrontando os recortes da cordilheira que se planta a seu lado. Era uma protecção e um desafio. Descíamos então até ao primeiro curso de água saltando e cantando entre as pedras do leito, semeando humidade e cobrindo a pedraria de camadas de musgo. À direita e um pouco para o interior, sobre uma pequena colina, repousam os alicerces da antiga aldeia medieval, Júris de seu nome. Atravessávamos o pequeno desfiladeiro entre arvoredo frondoso e espesso. Sobre pedras soltas, vencíamos outros dois pequenos ribeiros e penetrávamos num bosque de cores múltiplas sobre o coberto de folhas que impedia que o azul celestial chegasse até ao nosso olhar. Era o momento dos sonhos e a memória viajava até aos tempos da infância, da pureza dos dias, dos personagens que ficaram retidos no pensamento com o ar de bondade com que os celebramos. Não existia malícia nesses anos de aprendizagem e ainda era possível acreditar em tudo e as estrelas apareciam como luzes eternas que se acendiam na escuridão espacial e nos olhavam com esse sorriso que só os anos infantis podem apresentar. Mas se saímos da infância para a adolescência num instante tão breve como o de uma porta que se abre, também aquele bosque terminava e expunha de súbito a rudeza do que se seguia. O reduzido pedaço de terra que desenhava o caminho, abria-se então para o alto, a vegetação desaparecia e paredes alvas no alto da fraga estavam agora mais nítidas e a uma altura, que olhada de ali, parecia assustadora. Talvez pelo empinar do caminho, a memória regressava ainda ao passado, ao tempo em que a avó subia a rua e entrava naquela quinta tapada por muros altos e me permitia iniciar uma corrida para usufruir de tudo o que via. A alameda de glicínias, os anexos ao fundo cobertos de buganvílias de múltiplas cores, mas o mais importante era o imenso espaço de plantas que quase cobriam um lago mágico no seu meio, com uma ponte e a água coberta de nenúfares com peixes grandes e vermelhos espreitando no intervalo daquelas plantas circulares. Quando a avó chamava terminava subitamente o feitiço. Entretanto, os passos tornavam-se agora mais lentos, mais cadenciados, as palavras davam lugar a períodos longos de silêncio e parávamos para refazer a fadiga e olharmos enlevados a natureza que nos envolvia. A albufeira surgia já no horizonte, os picos cortados da montanha, poderosos, rodeavam agora o trajecto e o trilho tornava-se mais escarpado, mais exigente. Numa colina lateral os garranos pastavam sem pressa e sem receio. Por fim, alcançávamos o cume e os últimos metros apresentavam uma escada que nos transportava para os monumentos maias. Chegávamos então àquele naco de pedra plano ocupado pela capela com as paredes imaculadas de branco, resistindo às intempéries do Verão e dos invernos agrestes. O nosso olhar estendia-se do cimo daqueles mil e cem metros de altitude, chegava até à aldeia, ao ínfimo espaço do mosteiro, das casas de Outeiro sobrepostas à grande reserva de água e completava os 360⁰ de deslumbramento nas paredes da montanha erguidas como uma barreira, uma fortaleza impenetrável. Sentíamos essa liberdade imensa que se alcança com a altitude e nos lugares inóspitos. Um dia, voltaremos a subir à fraga uma última vez, em direcção ao infinito e à eternidade. Talvez então, chegue até nós o cântico milenar dos monges que há séculos penitenciaram junto ao regato de água que corre sem descanso junto ao mosteiro ou quiçá, a voz do muezim que chamava à oração no deserto do KaraKum quando por ali passamos. Ambos se dirigem a Deus. Por mim, ficarei com a música e um olhar imperecível pela beleza que ali vive.
“Quero que a embriaguez da minha tristeza se dissipe, pois compreendo que, mesmo que um dia volte aos sítios de onde venho, nada hei-de encontrar já do que lá deixei…” 1
Sinto um conforto imenso quando em meu redor escuto tantas vozes clamando contra a guerra. Contudo, quando procuro melhor, quase não encontro ninguém que tenha produzido o mesmo clamor exaltado nas guerras de agressão dos últimos 30 anos e das centenas de milhares de mortos que ficaram pelo caminho, nem encontro alguém que nos últimos 8 anos tenha gritado uma palavra que fosse pelos 14 mil mortos, 30 mil feridos e mais de 2 milhões de refugiados na guerra que vem ocorrendo no Donbass. É verdade, sem dúvida que é verdade que uma guerra não pode justificar outra ou outras guerras. Mas o que é ainda mais verdadeiro é a insuportável e imensa hipocrisia daqueles que ao longo do tempo, por comodismo, distracção, olhar para o lado, desinteresse ou cobardia, ficaram calados.
“Os homens brincam à tragédia porque não acreditam na realidade da tragédia que está a ser representada no mundo civilizado” 2
1 - Isabelle Eberhardt, em “Escritos no deserto”, Relógio d’Água, Lisboa, 1990
2 - José Ortega y Gasset
LONGOPRAZISMO
Mário Martins
Revista do Expresso 2022-10-14
Anda por aí um espectro, não já o espectro marxista do comunismo que o crivo da realidade devolveu ao mundo fantasmático (mal-grado a permanência da ditadura chinesa ou do regime clânico norte-coreano), mas, nas palavras do articulista, na forma de uma filosofia discreta, a ganhar terreno nos centros de decisão do mundo.
Dá pelo nome inglês longtermism, que a Wikipédia traduz para longoprazismo, a qual “consiste na crença de que a Humanidade deve dar prioridade ao futuro de longo prazo”.
Um entusiasta do ideário longotermista, Benjamim Todd, explica a ambição do movimento: “Uma vez que o futuro é imenso, poderá haver muito mais pessoas no futuro do que na geração actual. Isto significa que se quisermos ajudar as pessoas em geral, a principal preocupação não deve ser ajudar a geração presente, mas assegurar que o futuro corre bem a longo prazo.”
Outro entusiasta, o filósofo sueco Nick Bostrom, assume que “Por mais trágicos que tenham sido estes eventos (a I Guerra Mundial, o Holocausto, ou epidemias como a Peste Negra ou a Sida) para os que foram afectados por eles, na perspectiva da Humanidade a pior destas catástrofes não é mais do que uma pequena ondulação na superfície do mar da existência.”
Outro destacado elemento do longtermism, Nick Beckstead, é ainda mais claro: “Parece-me agora mais plausível, que salvar uma vida num país rico é substancialmente mais importante do que salvar uma vida num país pobre.”
Os longtermistas defendem duas linhas de acção prioritárias. “Prevenir catástrofes que ameacem extinguir a Humanidade, como uma guerra nuclear, uma pandemia ou uma inteligência artificial rebelde e, por outro lado, acelerar mudanças tecnológicas que garantam a propagação da espécie, nomeadamente a expansão planetária e a criação de uma inteligência artificial que sirva a Humanidade.”
Segundo o articulista, onde tudo isto se complica é na ligação entre os princípios morais desta filosofia e o mundo dos negócios centrado em Silicon Valley. A rede académica que sustenta o longtermism está baseada em colégios e institutos de reflexão que são sustentados por donativos de milhões por parte de nomes famosos e empresas que lideram os seus mercados, como Elon Musk, o espalhafatoso fundador da Tesla e da SpaceX, ou Peter Thiel, que é um dos maiores investidores em tecnologia e foi um dos maiores apoiantes de Donald Trump.
Para Émile P. Torres, que estuda o movimento, os longtermistas são “uma comunidade autocontida e autossustentada que está na sua maioria isolada da academia. Eles confiam na enorme quantidade de dinheiro que a comunidade tem, são mais de 46 mil milhões em financiamento que é aproveitado para se acotovelarem nos gabinetes políticos e nas redes sociais dos multimilionários tecnológicos. Não publicam nas revistas científicas porque não precisam, o seu objectivo é influenciar políticas governamentais e o ideário dos mais ricos para influenciar o destino da Humanidade.”
Há um aspecto central neste ideário longoprazista, transversal, aliás, a todas as ideias salvíficas e politicamente totalitárias, que é o de nos termos da ideia, as pessoas concretas desaparecerem, deixando, assim, o lugar vago para conceitos como o de Humanidade ou de Futuro a Longo Prazo.
Mas o espectro anda por aí…
O MÉTODO JACARTA
Manuel Joaquim
O Dr. Adão Pinho da Cruz, médico, pintor, escritor e poeta de reconhecidos méritos, aconselhou a ler o Livro “ O Método Jacarta”, de Vincent Bevins, norte-americano, jornalista e correspondente premiado, trabalhou para o Washington Post, Los Angeles Times e colabora com o New York Times, The Atlantic, The Economist, The Guardian, Folha de S. Paulo e outros, com o seguinte comentário “Se não conhecemos uma das maiores monstruosidades que mutilam a humanidade, temos a obrigação de ler este livro. De outra forma manteremos metade do nosso cérebro na escuridão, como a metade oculta da lua”.
Começando por referir que os EUA passaram a ser o país mais poderoso do mundo no fim da Segunda Guerra Mundial, cem anos após se terem constituído nas antigas colónias britânicas, integraram os territórios das antigas colónias francesas e espanholas, excluíram a população nativa, e construíram uma sociedade calvinista, fundamentalista, de supremacia branca, de desprezo pela população nativa, isto é, o genocídio. A escravatura dos negros vindos de África era o dia-a-dia. Como colonialistas e ocupantes tomaram os territórios do Luisiana, da Florida, do Texas e do Sudoeste, apoderaram-se do Havai, o controlo de Cuba, de Porto Rico e das Filipinas, na Guerra Hispano-Americana.
Recorda que, em 1941, H Truman, futuro presidente dos EUA, entre 1945 e 1953, dizia: “Se virmos que a Alemanha está a ganhar a guerra, devemos ajudar a Rússia; se a Rússia estiver a ganhar a guerra, devemos ajudar a Alemanha e, dessa forma, eles que matem o maior número possível dos outros”.
O segundo país mais poderoso do mundo em 1945 foi a União Soviética, também vencedora da guerra, mas com a população completamente devastada. Os EUA só entraram na guerra passado um ano após a batalha de Estalinegrado, que ocorreu em 1943, um ponto de viragem na guerra. Mas até 1945, os soviéticos, quando entraram em Berlim, já tinham perdido mais de 27 milhões de pessoas. Por isso, os EUA tinham um poder industrial e militar superior a todos os outros e demonstrou-o com as bombas atómicas sobre Hiroxima e Nagasáqui. Assim se formou o “Primeiro Mundo” (países ricos da América do Norte, da Europa Ocidental, Austrália e Japão); O “Segundo Mundo” (União Soviética, países da Europa Oriental) e o “Terceiro Mundo” (todos os outros, a maioria da população mundial, que praticamente vivia sob o colonialismo), classificação estabelecida nos anos de 1950.
A cruzada anticomunista dos EUA já tinha começado muito antes da 2ª guerra mundial quando interveio na Rússia com outras potências para destruir a Revolução. Após a 2ª guerra mundial tornou-se fanática. A ideologia americana é o oposto ao comunismo, tendo como princípio o individualismo, inicialmente apenas os homens brancos com propriedade podiam votar. Moscovo apresentava-se como um rival ideológico, defendendo que os povos pobres podem e devem ascender a todos os direitos.
Logo após o fim da guerra, os EUA fizeram Intervenções nos processos políticos na França, e Itália, e directamente na Grécia, na Turquia e no Irão. Na Grécia foram utilizadas as primeiras bombas de napalm, recentemente desenvolvidas num laboratório em Harvard para combater os guerrilheiros gregos que tinham lutado contra o exército nazi. Na europa ocidental aplicou um plano de ajuda económica, o Plano Marshall, colocando os países beneficiados no caminho do desenvolvimento capitalista conforme os seus interesses.
No início da década de 1950, começou o macarthismo, derivado do nome do senador Joseph McCarthy, que começou uma verdadeira caça aos comunistas, mas, na verdade, iniciou-se muito antes, em 1938, com o Comité de Actividades Antiamericanas. Todas as pessoas que tivessem a veleidade de sugerir ou comentar algo suspeito era perseguido. Os EUA foi transformado na “fortaleza do anticomunismo” e passou a ser a fonte de legitimidade aos movimentos homólogos em todo o mundo.
Entretanto, em 4 de Abril de 1949, os EUA criaram m uma organização político-militar, a Nato, Aliança do Atlântico Norte, constituída por EUA, Canadá, Islândia, Reino Unido, França, Bélgica, Países Baixos, Luxemburgo, Noruega, Dinamarca, Itália e Portugal. É interessante registar que Portugal foi um dos países fundadores da Nato quando existia um regime fascista. Em 1952, depois das intervenções dos EUA, aderiram a Grécia e a Turquia. Em 1955, aderiu a Alemanha Ocidental, RFA. Em 1982, aderiu a Espanha. Em 1989 deu-se a queda do Muro de Berlim. Em 1990, a Alemanha Oriental, já unificada com a Alemanha Ocidental, passou a fazer parte da Nato. Em 4 de Dezembro de 1991 deu-se a desintegração da União Soviética. Em 1999, aderiram a Hungria, Polónia e a República Checa. Em 2004 aderiram a Letónia, Lituânia, Estónia, Eslováquia, Bulgária, Eslovénia e a Roménia. Em 2009, a Croácia e a Albánia. Em 2017, o Montenegro. Em 2020, a Macedónia do Norte. Em 18 de Maio de 2022 solicitaram a adesão a Suécia e a Finlândia.
Em resposta à criação da Nato, a União Soviética, em 14 de Maio de 1955, constituiu o Pacto de Varsóvia com os países que na altura faziam parte da Europa Oriental. Com a Perestroika, movimento político de transformação da União Soviética, em 25 de Fevereiro de 1991 foi decidido pôr fim ao Pacto, com promessas dos norte americanos do fim da Nato, o que não veio a acontecer.
Com o pretexto de luta contra o comunismo, os EUA, tendo como objectivo a conquista e domínio do mundo, desencadearam acontecimentos impensáveis nos países do chamado Terceiro Mundo, e que ainda perduram.
Indonésia, em 1965/1966, o maior país de maioria muçulmana com o segundo maior partido comunista do mundo, um milhão de mortos. O processo é muito bem relatado no livro “O Método Jacarta”, método usado pela CIA em muitos locais: Brasil, Argentina (onde faleceu recentemente uma grande lutadora pela liberdade, Hebe de Bonafini, com 93 anos, que organizou a luta contra o fascismo, "Mães da Praça de Maio”, mulheres que perderam os seus filhos, homenageada pelo Papa Francisco, também argentino, e pelo historiador Manuel Loff, com um belíssimo texto publicado no jornal Público de 29 de Novembro), Guatemala, Vietname, Coreia, Brasil, Cuba, Paquistão, (6º pais mais populoso do mundo), Nigéria (7º país mais populoso do mundo), Venezuela, Chile, Nicarágua, Granada, Sri Lanka, Sudão, Gana, Irão, Iraque, Síria, Filipinas. Milhões de mortos que a maioria das pessoas desconhece por falta de informação.
A máquina da propaganda e o domínio da comunicação fazem com que “ninguém se importa com a colonização cultural, se toda a gente for colonizada ao mesmo tempo”, conforme palavras de Miguel Esteves Cardoso.
Um outro livro, editado no Brasil, São Paulo, pela editora “Expressão Popular”, em 2020, de Vijay Prashad, historiador e jornalista indiano, cujo título é ”Balas de Washington – uma história da CIA, golpes e assassinatos” é útil complemento ao livro "O Método Jacarta".
“ Balas que assassinaram processos democráticos, que assassinaram revoluções e que assassinaram esperanças”, como diz Evo Morales no seu prefácio.
Diz-se que os EUA é “O país que mais propaga os princípios democráticos." Há trinta anos que não cumpre aas deliberações da Assembleia Geral da ONU sobre o fim do bloqueio norte-americano a Cuba. Este ano, a deliberação da Assembleia Geral da ONU teve 185 votos a favor, 2 votos contra, dos EUA e de Israel, 2 abstenções, da Ucrânia e do Brasil.
A ONU condena o bloqueio a Cuba pela 30ª vez. Mais palavras para quê?
OLHAR PARA A AGULHA
António Mesquita
"Os meios de comunicação, por sua vez, entraram numa prática de democracia de opinião televisionada que está perto do conto do vigário, reduzindo o debate de ideias a um debate de imagens, frequentemente manipuladas."
(Danièle Bourcier)
A informação e a contra-informação estão na ordem do dia. Campeia a epidemia das "fake news", em inglês, claro, porque é global. Das discussões já não nasce a luz, se alguma vez nasceu, mas o nevoeiro da "Luz de Inverno", o filme de Bergman de 1963. O padre Thomas não demove o crente do suicídio, deitando óleo no fogo ao revelar a sua fraqueza, o "silêncio de Deus". Esse crente vivia apavorado com a perspectiva da China de Mao poder vir a ter a bomba atómica, coisa a que nos habituamos hoje em dia. E o mundo tornou-se tão perigoso que o "perigo amarelo" se relativizou. Este padre não pôde argumentar contra o "silêncio de Deus", por ele próprio o sentir. É certo que a haver discussão, nem tudo estava perdido, embora nada tivesse ficado esclarecido.
Teresa de Sousa, a propósito de algumas discussões na nossa praça, lembrou que para pôr fim a um desentendimento sobre o estado do tempo bastava abrir a janela. Infelizmente não se pode recorrer a esse método na maior parte das situações.
Devemos ter presente, aliás, que quando as "partes" chegam a acordo só se obteve um consenso, o que nem de longe nem de perto equivale ao estabelecimento da "verdade". Pode-se mesmo dizer, não em desabono da dita, que os homens parecem passar bem sem ela, apesar de não poderem passar sem a respectiva retórica. O consenso pode ter a ver com a justiça, mas com a verdade não.
Hegel, talvez o mais treslido dos filósofos, sobretudo desde a interpretação do seu mais célebre discípulo, ensinava que as ideias, na cabeça de cada um, atravessam várias idades e que a primeira é uma espécie de fetichismo enredado em preconceito e abstracção. Por isso a poesia permanece a chave mestra do movimento interno da ideia. As ideias feitas são afinal todas as ideias, tornadas coisa em vez de espírito. Estão, no melhor, no estado de conclusões e em nada nos ensinam a pensar. Já houve quem considerasse um preconceito metafísico o ensino da poesia separado dos outras saberes.
O que parece é que nunca encontraremos a verdade pelo confronto das ideias. É até mais certo de que só poderemos pensar uma questão controversa depois de nos envolvermos e de tomarmos partido.
A propósito da guerra, de qualquer guerra, que é o paroxismo da controvérsia, não me espanta que haja posições "recuadas" e posições mais consensuais. Porque a respectiva visão do mundo implica lógicas diferentes. Podemos hoje condenar as fogueiras da Inquisição sem que a religião ou a Igreja se tornem mais vulneráveis e, no entanto, é um facto que ambas foram parte de um "crime contra a humanidade". Galileu não deu realmente "o braço a torcer" para nós que conhecemos o desenvolvimento histórico das suas ideias. Mas não foi essa, certamente, a opinião do Santo Ofício.
A fidelidade de certos jornalistas à sua tomada de posição inicial, de moderação ou crítica ambivalente, não nos pode supreender, e não é uma questão de orgulho intelectual. É assim que todos pensamos, continuando o primeiro passo dado num sentido ou noutro.
George Steiner perguntava se a música poderia mentir ou se seria "completamente impermeável àquilo a que os filósofos chamam "funções de verdade". A minha hipótese é que a música procura o sentido, mesmo através da dissonância. Certos músicos que exploraram a via do não-sentido ficaram como ruínas no caminho.
Defendo que o chamado equilíbrio de posições, o "dar uma no cravo e outra na ferradura" é uma das misérias dum mundo que perdeu a dimensão do político.
Como diz Alain, não podemos fazer de balança e simplesmente olhar para que lado se move a agulha sob o peso das opiniões.(*) É preciso escolher.
* Alain, "Histoire de mes pensées"
01/11/22
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
A madrugada ia terminando o seu caminho com os primeiros rumores do trabalho. O silêncio que subjaz à noite começava a ser penetrado por um crescendo de ruídos. Rostos dormentes embarcavam nos transportes em direcção a um dia longo de canseiras. É o momento do dia em que os sorrisos ainda carecem de coragem. Com o correr do tempo a multidão alastra e move-se agora a um ritmo mais apressado. O sol despontou e ergue-se também ele mostrando a fadiga de uma volta ao planeta. O burburinho da estação com os olhares nos ecrãs, procurando linhas e horários. Sentamo-nos no longo banco de pedra, voltados para Oriente para onde nascem os raios de luz que nos acolhem e confortam. No horizonte surge, lenta e silenciosa a velhinha 1400 laranja que só quando acelera se denuncia com o trabalhar crepitante do motor. Acolhe-nos a carruagem vermelha e branca recuperada do cemitério onde a quiseram esquecer. Confortável e de janelas amplas que se podem abrir. Sentirmos de novo o vento a roçar na face, faz-nos viajar para outra época. A linha estende-se ao longo de casas e ruas enquanto a paisagem não se despe do tecido urbano, mas aos poucos vão surgindo os campos verdes, já sem o brilho do estio, sentindo-se até alguma tristeza outonal. Percorremos as terras do Sul do Entre-Douro e Minho, berço da nação e das suas primevas casas senhoriais, senhores feudais de largos senhorios. O Outono ainda não semeou as suas cores melancólicas. O verde predomina pelos campos de cultivo e as pequenas florestas arbóreas. Quando a composição se volta para Sul, penetramos no longo túnel de gratas lembranças de uma infância de há muito. O extenso túnel, o comboio vagaroso, as lâmpadas de uma luz amarela empobrecida iluminando rostos já cansados da viagem que já levava mais de duas horas. Por fim, daquela boca escura saía com fragor a poderosa máquina a vapor, rodando entre as paredes da montanha acelerando ainda um pouco mais até ao apeadeiro no final da curta recta. Ao descermos para o negrume da noite lá encontrávamos a senhora Milinha com um candeeiro para nos iluminar um pouco do carreiro ao longo da linha até à vetusta casa de pedra sem corrimão auxiliador nas escadas. Por ali ficávamos uma semana, entre o calor que descia da ramada extensa que cobria o terreiro enquanto uma frágil corrente de água cantava dia e noite tombando no tanque que aparava a fonte. Quando o comboio silvava corríamos pelo estreito caminho para fantasiarmos mundos enquanto olhávamos assombrados as vielas movendo as enormes rodas entre cores de vermelho e preto. Foi assim durante vários anos pelas terras de A Sibila, até que um dia tudo acabou. Agora a saída do túnel é rápida e já não se escuta o silvo que alertava para a presença do comboio que aparecia do interior da terra. A casa de pedra ainda lá reside, modernizada, com o granito coberto e paredes de um branco puro. Os tuneis sucedem-se e quando o olhar já procurava a nitidez da luz, vimo-nos sobre o Tâmega sobre uma albufeira que faz engrossar o caudal, elevando-o, fazendo-o adquirir a forma de lago a embelezar a paisagem. Por baixo da mansidão destas águas ainda resta a ponte onde os bravos do General Silveira detiveram os franceses de Soult. Entramos em declive, lento e prolongado e quando de novo tomamos o rumo para Leste, surge então o Douro, num dos seus expoentes de beleza. O olhar sente-se agradecido e as imagens sucedem-se sem que consigamos desviar a atenção. Procuramos gravar o que vemos, mas tudo é demasiado elevado para uma memorização suficiente e nítida. É um momento de grande majestade do rio. O lago imenso, as montanhas descendo com delicadeza sobre as suas margens. Em frente, enquanto a linha vai deslizando em curva, o Bestança, forma um recanto suave e no encontro das águas aparece-nos aquele pequeno núcleo de Porto Antigo, de onde não nos apetece sair quando por ali passamos. Ainda pasmados vemos surgir a brancura do rendilhado da bela ponte de Mosteirô. A partir daqui, temos o Douro e a linha. Deixamos de pensar e permitimos que o olhar saia pela janela e vá vadiar pelo encanto que a paisagem oferece. Como num álbum em que viramos a folha e sorrimos com todo o rosto ao ver fotografias que admiramos, é também assim este rio que desce para o mar enquanto subimos para a soberba dos socalcos vinhateiros. A linha curvando com delicadeza como se colocando numa posição que nos permita observar a enseada de Aregos, a quietude das águas, o rumor do silêncio como uma névoa bailando sobre o casario e a imaginação a levar-nos na companhia do Eça pela encosta acima. O comboio agora balanceia com doçura e o que nos rodeia é de certa forma ainda o século XIX com aquele ar romântico que nos faz pensar em aldeias perdidas no tempo. Quando acordamos, passávamos já pela aldeia de Agustina agora parte da cidade maior. Ultrapassadas as pontes, o fascínio persiste com mais delicadeza. Deixamos de pensar, limitamo-nos a usufruir de uma sensação irrepetível. O comboio, o rio e na margem oposta a mais bonita estrada do mundo como lhe chamaram. Há um misto de realidade e devaneio no que vemos e, sobretudo, no que sentimos. Uma última curva, a composição parece inclinar ligeiramente, enquanto atravessa a pequena ponte sobre o rio Pinhão que proveniente das alturas de Jales se entrega nos braços do Douro, rumando ambos sem pressa para o oceano distante. Em frente a ponte maior nos seus três meios arcos a proteger o tabuleiro e a pequena vila que continua sem perder o ar de aldeia. Ficamos enquanto a 1400 prossegue o seu caminho até ao Pocinho, desde que lhe vedaram a passagem até Barca d’Alva, esta pequena aldeia que nos traz sempre a memória de Adriano, “Foi em Barca d´Alva, quando o sol nascia, uma ceifeira cantava, cantando vertia, trovas na fronteira, quando o sol nascia”. Deambulamos pela rua com o pavimento revestido pelos fatigados cubos de granito que ali permanecem desde a infinitude dos tempos. A paisagem altaneira que protege o rio, ainda não se engalanou com as cores outonais. Passeamos o olhar pelos azulejos da estação com as suas representações vinhateiras, à sombra das quais tem vivido o Pinhão. Sente-se no ambiente o remanso dos tempos correndo com lentidão, como se o movimento parasse, se acomodasse no deslumbre do que os olhos vêem. Mas de facto, a vida prossegue. De regresso à estação, o sol estende-se como um afago sobre as flores que se escondem nos canteiros. Escuta-se uma curta buzina leve e a 1400, já se aproxima quase em silêncio para nos levar de retorno na companhia do Douro. Já não é a laranja, mas a azul a que leva desenhada as asas de uma gaivota. É no dorso dessas asas que nos sentimos na descida do Douro até à cidade junto ao mar.
ESPERANDO PELA PAZ
Manuel Joaquim
Wikipedia-Disparos de armas de artilharia anti-aérea durante um bombardeio de aviões da OTAN a capital da Iugoslávia, em 1999.
Com a entrada de tropas russas na Ucrânia, em Fevereiro de 2022, foram dadas notícias muito destacadas que não tinham existido guerras na Europa desde o fim da 2ª guerra mundial até agora. Utilizando uma expressão do meu Amigo Jorge Cruz, os alcagotes que diziam e dizem isso, querem desinformar que após o fim da 2ªa guerra mundial, os conflitos mantiveram-se sempre. A divisão da Alemanha, a formação da Nato e depois a formação do Pacto de Varsóvia como resposta, as tentativas de subversão em alguns países, a recusa por parte da Nato/EUA da aceitação de negociações para a fusão das duas Alemanhas, as campanhas de provocações sistemáticas que podiam ter levado a novos conflitos bélicos.
A Jugoslávia sofreu a partir dos anos de 1980 ataques sistemáticos contra a sua economia, foram criados e alimentados grupos armados na Bósnia, no Kosovo e na Macedónia, Na madrugada de 24 de Março de 1999, a Nato iniciou o bombardeamento da Jugoslávia. A cidade de Belgrado, capital do país, foi bombardeada. Hospitais, aeroportos, prédios governamentais, fábricas, infraestruturas, igrejas, museus e zonas históricas, foram destruídos. A Nato justificou o ataque efectuado aos geradores de energia de um hospital infantil para salvar vidas mas o que aconteceu é que muitas crianças que estavam nas incubadoras e outras faleceram por falta da energia. Uma fábrica de tabaco foi bombardeada para causar efeitos psicológicos aos fumadores.
Aconteceu que nessa ocasião bombardearam de forma intencional a embaixada da China. Como já referi em artigo anterior, a China não se esquece e não perdoa. Isto é a prova de que os problemas com a China não são de agora, mas são desde 1949, ano da Revolução Chinesa.
O Prof Michel Chossudvsky, do Canadá, professor do Centro de Pesquisa em Globalização da Universidade de Otava, Canadá, acabou de apresentar, em 21 de Outubro de 2022, em Belgrado, o livro “A guerra de Agressão EUA – OTAN contra a Jugoslávia”, publicado pelo Fórum de Belgrado em 2021, que deve ser lido.
Em 2014 EUA/Nato investiram fortemente na desestabilização da Ucrânia. Organizaram um golpe de estado violento, depondo o presidente e governo eleitos segundo as regras consensualmente estabelecidas. As novas autoridades passaram a estar ao serviço de interesses que até aí não eram aceites pelas populações. A dinâmica do processo político desenvolveu-se de tal modo que os russos decidiram intervir. Hoje, o conflito, já não é mais entre a Ucrânia e a Rússia. Hoje é um conflito entre EUA/Nato e a Rússia.
Espero que durante o mês de Novembro se encontre o caminho para a PAZ.
INSONDÁVEL NATUREZA
Mário Martins
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“Hoje a pergunta (…) talvez seja esta: és um humano ou uma besta? Porque as bestas dos tempos modernos (…) sem cauda, nem marcas maldosas muito evidentes, não se distinguem dos humanos a não ser quando agem.”
Gonçalo M. Tavares
Revista Expresso de 9Set2022
Chamam-te, a ti Natureza, - desculpa este tratamento de colegas de escola, mas o tratamento por você seria feio, e por V. Exª. demasiado cerimonioso e fora de moda, e de qualquer modo, tu és uma escola de vida e de morte -, chamam-te, com todo o sentido, Mãe, porque todos nascemos do teu “ventre”, com a radical diferença de ser impossível cortar o cordão umbilical.
Dispensas divindades porque és absoluta, és a causa de ti própria, em ti não há antes nem depois.
Não te confundes com o universo físico, ao qual faz sentido interrogar o que existia antes dele e o que será no futuro.
És imaterial e intangível. Parafraseando a conhecida máxima do Livro de Tao, “Toda a gente te conhece e, contudo, ninguém te conhece.”
És todo-poderosa mas imperfeita, porque facultas a beleza e o bem estar à custa do sofrimento e do absurdo da morte. E porque dotaste o ser humano de um comportamento indesejável. O teu sentido é não teres sentido.
Por isso, és um alfobre de deuses para uma espécie humana que, no fundo, não te aceita tal como, a seus olhos, te apresentas.
Vivendo o ser humano a sua condição naturalmente imperfeita, não se pode tomá-lo como padrão do bem. O erro, muito comum, em que até um pensador e escritor de créditos firmados como Gonçalo M. Tavares incorre, está em confundir o humano com o humanitário.
O humano é o que é, tão capaz do bem como do mal. Não só as bestas de que fala o autor são igualmente humanas como, pior do que isso, cada um de nós carrega em si um exemplar, pronto a acordar e a fazer estragos, reunidas as condições propícias.
Hélas!
VIAGEM AO ANTROPOCENTRO
António Mesquita
"Desce à cratera do Yocul de Sneffels que a sombra do Scartaris vem beijar antes das calendas de Julho, ó viajante audaz, e tu chegarás ao centro da Terra. Eu o fiz."
Arne Saknussemm.
É, bem avançados no romance de Júlio Verne, "Viagem ao Centro da Terra", que a cifra do manuscrito dum alquimista islandês do século XVI, Arne Saknussemm, é desvendada. Como se o feito em si de chegar ao âmago do planeta devesse ser escondido a sete chaves do resto da humanidade. Porquê? O professor Lidenbrock e o seu sobrinho Axel, o narrador, acompanhados de Hans um guia local, munidos das suas lâmpadas Ruhmkorff, afinal descobriram um outro mundo de luz, com um mar interior, atmosfera, e animais exóticos a alguns quilómetros de profundidade...
Sabemos que os três exploradores não atingiram o fim da viagem porque uma explosão por eles provocada os expeliu pela cratera do Stromboli, o vulcão da Sicília, a 5 mil quilómetros de distância do ponto de entrada da sua expedição.
O filme "Il Buco" (entre nós, "Das Profundezas") de Michelangelo Frammartino (prémio do 78o. Festival de Veneza) aparentemente não foi inspirado por Júlio Verne, mas pela façanha de Giulio Gècchele de 1961. Um grupo de jovens espeleólogos piemonteses dirigiram-se para o sul, na Calábria, para explorar o fundo do Abismo do Bifurto, a 682 metros abaixo da terra, a mais profunda gruta de Itália.
A paisagem montanhosa é um cenário de majestade com um velho pastor que fala a linguagem do seu burro. Como na reportagem da escalada da Torre Pirelli, em Milão, que aparece ao princípio, os milionários que sobem, vendo os habitantes da torre como pássaros nas suas gaiolas, têm a sua o onomatopeia.
Há assim três linhas narrativas que se entrelaçam com o fundo quase documental da descida ao Bifurto. O da reportagem milanesa sob o signo da curiosidade inútil, o do velho pastor e testemunha (António Lanza) que cai a meio do filme para não mais se levantar ( a sua morte coincide com o momento em que o fundo do despenhadeiro é atingido, com o gesto do explorador "trancando" o empreendimento) e, claro a proeza de espeleologia que não tem rostos, nem palavras, apenas as magníficas imagens de Roberto Berta, veterano de Godard e Resnais.
As páginas incendiadas da revista Epoca com as fotos de Kennedy ou Sofia Loren parecem-se um pouco com a auscultação do médico no casebre do pastor. A sala de cinema, com as suas luzes de presença, nas cenas em que a acção ocupa uma luzinha no canto do écrã, é, de resto, o anticlímax, ou a distância brechtiana que impedem a ilusão dramática.
Culminando o fim da "descoberta" o cartógrafo do grupo desenha a figura da gruta até ao fundo, pronta para um novo esquecimento de arquivo. Frammartino fala numa espécie de colonização.
A estas histórias paralelas, poderíamos acrescentar, sem que esteja no filme, mas sim, porventura, na memória dum espectador da minha geração, a aventura islandeza de Júlio Verne. Aventura falhada, tecnicamente, se assim podemos dizer, mas que alimenta o fogo sagrado da imaginação.
Vasco Baptista Marques, na sua crítica no Expresso diz que o objectivo do filme "reside na configuração de um universo não antropocêntrico, onde - sem perder a sua dignidade - o Homem se descobre reduzido às suas reais proporções (daí que a realização faça questão de colocar a palavra ao nível dos demais ruídos do mundo)".
Não antropocêntrico é o que não nos é possível conceber. É a quarta narrativa paralela. Assim seja, para glória de Frammartino.
VLADIMIR, O PEQUENO
Talvez os ucranianos, apesar de todas as declarações de fraternidade, não tenham podido esquecer o Holodomor e as suas réplicas. Talvez não queiram ser "espanhóis", como nós não queremos - e os Filipes não foram assim tão maus. Vamos negar-lhes esse direito porque há "nazis" no meio deles, porque a CIA manobrou estes anos todos, ou porque a NATO bombardeou Belgrado? Nem os piores crimes que se possam atribuir à NATO justificam a guerra que lhes moveu Putin. Sejamos justos: esse homem não tem perdão. Não é Pedro o Grande quem quer.
01/10/22
O BARBA AZUL
António Mesquita
Creio que não é novo dizer-se que "Monsieur Verdoux" é o menos chapliniano dos filmes do grande Charles Spencer. Não surpreende que esta versão do Barba Azul tenha agradado a Welles por causa do “crime irónico”.
Um empregado bancário, atirado para a valeta pela crise, ao fim de trinta anos de serviço, que decide utilizar a sua inteligência por conta própria e nos revela assim a natureza criminosa da instituição que serviu, eis a demonstração dum pessimismo sem metáfora.
Como o burguês, dividido no seu ser sentimental, na sua alma e no frio especulador ou negociante de canhões, Verdoux é um "little fellow" simpático, cuidadoso de não pisar a lagarta no seu jardim, pai extremoso e amigo abnegado duma inválida, mas na outra face é um cremador de velhas, o assassino metódico que faz a sua tarefa com a mesma indiferença determinada do antiga caixa. E como se analisasse o resultado económico duma empresa, ele aconselha, enquanto a câmara nos passeia num cemitério, a não ser seguido em caminho tão difícil...
À personagem dividida sucede a lenda e o que ele chama “encontrar o seu destino”. Depois do episódio com o inspector que felizmente para o Barba Azul não era a polícia e, portanto, um golpe de audácia podia eliminar a investigação, como o fogo consumira o retrato, que era a prova que desde o início faltou, dando lugar à história dos crimes, depois da ruína, há um salto no tempo. O personagem aparece-nos sobrevivendo a si mesmo. E aqui o moralismo chaplinesco denota o criminoso, da sua lenda. A generosidade da figura é sempre privada. Está ausente da sua “profissão”. Fora da família, último reduto da verdade moral, é o cinismo. E essa admirável cena em que ensaia o envenenamento da jovem desesperada, como um anti-Calvero, só aparentemente é o desmentido disso. Não é a miséria nem a infelicidade que demovem o calculista de a fazer beber o copo. É a identificação com uma experiência pessoal. O acaso permite-lhe reunir dois actos perfeitamente necessários: desfazer-se da única testemunha e pôr à prova a eficácia do veneno. Verdoux decide, incapaz de continuar a sua vida criminosa sem que isso tivesse uma justificação absoluta – a mulher e o filho tinham já morrido -, terminar a carreira e restituir a sua imagem à dama que ao perder a sua fotografia lhe salvara a vida. Essa nobreza funciona como um cosmético sobre a sua lenda. É o mesmo que se passa com o depoimento no tribunal. Às peripécias mais ou menos cómicas do enredo, com essa nostálgica evocação de Fantomas sobre os telhados de Paris e a cena da florista tão crítica do código amoroso – como nas “Luzes da cidade”, existe aqui uma cegueira de sentido -, contrapõe-se o epitáfio declamatório de Hynkel (no "Grande Ditador") que se tomou por judeu.
O amor à vida e às coisas simples é um tema caro ao criador de Charlot. Que significa esse trago de rum antes da guilhotina se não o célebre pontapé na perisca, ao entrar na prisão?
E há o cinema em Verdoux. O dos outros. “Aurora”. É notável como a ideia do crime se nutre das águas inteiras do lago. O pensamento não seria melhor sugerido por um detalhe. Esse plano adianta a condição óptima do crime: a solidão da natureza. No barco, Chaplin cita-se a si mesmo. Não se trata de nenhuma metáfora, de nenhum fragmento. Nem é a silhueta de Hitchcock. É o clown. A máscara que significa o contrário do sentimento.
Adoro essas viagens de comboio que são a chave da ubiquidade do "lady-killer". Não nos esqueçamos, além disso, que o banco é o modelo profundo deste financiamento da morte. Com o seu ficheiro, as suas transferências de conta, as suas extorsões. Ele gere um capital de solidão disperso no território das pequenas agências.
E para terminar, o sintagma do romance policial. A conversação distanciada sobre o crime perfeito. Há uma situação dessas em “Suspicion”. A revelação jocosa pelo farmacêutico da fórmula do veneno que seria de molde a diluir o interdito na amoralidade da hipótese é compensada pelo comentário horrorizado duma personagem que o espectador sabe incapaz de conceber tal crime.
Porque a família de Verdoux está fora da “comédia”. É um pressuposto de ordem ética colhido na melodramaturgia chaplinesca.
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Aguardar por alguém deve ser sempre um acto de paciência, não no sentido negativo da resignação ou da tolerância, mas da constância. Não devemos considerar o tempo de espera, um tempo perdido, mas antes de aproveitamento para reflectir, sobre a vida e o tempo que vivemos, o passado e o que há-de chegar. Há vários dias que te aguardava na pequena cidade siberiana que leva o nome do rio que corre um quilómetro a Sul, o Shilka. Este rio é a continuidade do Onon, após este receber a corrente do Ingota e muito mais para a frente quando encontrar o Ergun, faz nascer o longo rio Amur. Sabendo de antemão que vais acompanhar o Amur na sua viagem para o mar, não tinha dúvida sobre a tua passagem por esta cidade com cerca de treze mil habitantes que o transiberiano toca na sua passagem. Os dias foram passando na quietude do lugar que fui percorrendo, seduzido pelo trânsito dos longos comboios certamente a caminho de Vladivostoque e revivendo a viagem que até ali me levara após o nosso último encontro no Cáucaso, trazendo comigo as preocupações que deixaste transparecer sobre os tempos negros que sobrevoam a humanidade. As nuvens que toldavam a Europa encheram-se de escuridão como nos momentos que antecedem as grandes trovoadas e de certa forma ansiava por conhecer como o teu pensamento contemplava as convulsões que começam devagarinho a bater à porta das democracias coloniais. Uma manhã, descia a longa Ulitsa Oktiabrskaia para deixar que o olhar se perdesse nas colinas montanhosas que se vêem ao longe na margem direita do Shilka quando me apercebi da tua presença em sentido oposto. Aguardei com alegria contida que te aproximasses e quando olhaste para o horizonte vi nascer-te no rosto esse teu sorriso inconfundível que me faz sempre lembrar as palavras do poeta cantor, “aprendi a amar a madrugada que desponta em mim quando sorris”. Senti que chegara o momento de escutar as tuas vivências. Sentamo-nos no Baikal que não cheguei a perceber se era café restaurante ou restaurante que servia café, mas pouco importava, o mais importante é que estávamos em sossego. Olhava esse teu silêncio que antecede sempre as tuas palavras e deixei que o tempo deslizasse. “Quando penetramos nas montanhas Khentii”, disseste tu como se estivesses a continuar uma conversa e não no seu início, “sentimos que penetramos num espaço sagrado. Os mongóis são muito zelosos e a ideia de que alguém vai atravessar aquele território protegido deixa-os em sobressalto e se vais sozinho e sem guia, percebemos a incredulidade que se estampa nos seus rostos. São dias inteiros caminhando por uma paisagem soberba. A quietude que se sente quase nos imobiliza. Os lagos, a vegetação, os cursos de água, sucedem-se desenhando mantos de beleza que devido ao facto de o nosso movimento apeado ser lento, penetra-nos de tal forma que parecem fotografias coladas no nosso cérebro, como se desfolhássemos um livro e cada página nos revelasse um segredo. Quando por fim, encontrei a nascente do Onon, numa espécie de pântano impossível de caminhar, senti-me fisicamente cansada e por ali me deixei ficar longas horas em repouso contemplativo. Tentei esvaziar o pensamento, mas não o alcancei totalmente. Ao visitar o passado, ocorreu-me uma descrição de Malraux numa das suas obras. Dois generais republicanos conversavam num fim de tarde após uma batalha ganha pelo exército que comandavam. Faziam-no numa igreja que naquele momento era utilizada pelas forças governamentais. Em certo momento, escutam sons de música que sobe pelas paredes e se espalha pela abóbada. Um soldado tocava no órgão um Requiem e ambos se evadiram dos seus diálogos guerreiros e deixaram que o pensamento se diluísse na beleza dos sons. Na nascente do Onon senti essa música invadir-me quando pensei na Europa.” O teu discurso fluído até então, teve uma paragem como se tivesses tido necessidade de revisitar um espaço para além daquele onde nos encontrávamos. Ao fim de alguns minutos, regressaste com uma voz sumida, e quase num murmúrio ouvi-te fazer uma pergunta, “já pensaste como a humanidade tende a repetir os erros? Há oitenta anos atrás, os líderes das nações coloniais correram a Munique para cumprimentar a serpente e agora correm para a margem do Dniepre em abraços esfuziantes. Bem dizia Malraux, ‘Sempre vi as democracias intervir contra tudo, excepto contra os fascismos’. Que palavras sábias. Fazem-nos caminhar à beira do abismo e exigem que acreditemos que estamos a atravessar uma planície. Sãos uns bastardos. Sabes, os comandantes que foram surpreendidos pelos sons do requiem, falavam sobre Unamuno”. Mas Unamuno não estava do lado da infâmia golpista?, arrisquei de forma um pouco provocatória para lhe incentivar o pensamento. “Unamuno era um intelectual do século XIX e a aparente desordem da República perturbava-o, mas cedo percebeu que os que falavam em nome da pátria, de Deus e da família, eram apenas o exército da barbárie e não dúvidas em enfrentar a escumalha que se alojou no território sagrado da sua Universidade. Só a sua grandeza intelectual permitiu que dissesse a essa escória humana que foi Millan Astray, ‘O senhor é um aleijado, como Cervantes, mas sem a sua grandeza, e procura um alívio sinistro ao seu aleijão causando mutilações à sua volta’. Astray além de fascista era um acéfalo, violento e sem escrúpulos”. As horas fluíam tranquilas enquanto te escutava e olhava o teu rosto onde se liam preocupações que este tempo nos sobrecarrega, não o tempo mas essa gente que se apoderou dele e nos condiciona o presente e o futuro como já o fez no passado. Foste descrevendo o teu lento caminhar até Shilka e agora ali estávamos prontos para descer ao longo do Amur. Quando te afastavas ainda te perguntei por leituras, o que lias. “Ler? Já não leio muito, a não ser sobre o mar, de quem sou, cada dia que passa, uma amiga mais íntima…”. Sorriste e compreendi que respondias com as palavras de Unamuno.
Nota – As citações foram extraídas da obra de André Malraux, "A Esperança".
LIÇÕES DE MESTRE (A FECHAR)
Mário Martins
https://www.fnac.pt/Sete-Breves-Licoes-de-Fisica-Carlo-Rovelli/
NÓS
Se o mundo é um pulular de efémeros quanta de espaço e de matéria, um imenso jovem jogo de encaixes de espaço e partículas elementares, o que somos nós? Somos também nós feitos apenas de quanta e partículas? Mas então de onde vem essa sensação de existir singularmente, e na primeira pessoa, que cada um de nós experimenta?
“Nós”, seres humanos, somos acima de tudo o sujeito que observa este mundo, mas também somos parte integrante do mundo que vemos, não somos observadores externos. Estamos situados nele. A nossa perspectiva sobre ele é a partir de dentro.
As imagens que construímos do universo vivem dentro de nós, no espaço dos nossos pensamentos. Entre essas imagens e a realidade da qual fazemos parte, existem inúmeros filtros: a nossa ignorância, a limitação dos nossos sentidos e da nossa inteligência, as próprias condições que a nossa natureza de sujeitos, e sujeitos particulares, impõe à experiência. Essas condições, todavia, não são universais, como imaginava Kant, deduzindo então, evidentemente sem razão, que a natureza euclidiana do espaço e até a mecânica newtoniana deveriam, a priori, ser verdadeiras. São a posteriori da evolução mental da nossa espécie e estão em evolução constante. Não só aprendemos como aprendemos também a mudar gradualmente a nossa estrutura conceptual e a adaptá-la àquilo que aprendemos.
A informação que um sistema guarda acerca de outro sistema não tem nada de mental ou subjectivo, é apenas o vínculo que a física determina entre o estado de uma coisa e o estado de outra coisa qualquer. A substância primeira dos nossos pensamentos é uma riquíssima informação recolhida, trocada, acumulada e continuamente elaborada.
Mas também o termostato do meu aquecedor “sente” e “conhece” a temperatura da minha casa, logo, tem informação sobre ela, e desliga o aquecimento quando está calor que baste. Qual é a diferença entre o termostato e eu, que “sinto” e que “sei” que está calor, que decido livremente ligar ou não o aquecimento e que sei que existo? Como pode a troca contínua de informações na natureza produzir-nos a nós e aos nossos pensamentos?
O que significa sermos livres de tomar decisões, se o nosso comportamento não faz senão seguir as leis da natureza? Existirá porventura em nós algo que escapa às regularidades da natureza e que nos permite torcê-las e desviá-las com o nosso pensamento livre? Se algo em nós violasse as regularidades da natureza, já o teríamos descoberto há muito tempo. Não há nada em nós que viole o comportamento natural das coisas. Ser-se livre não significa que os nossos comportamentos não sejam determinados pelas leis da natureza. Significa que são determinados pelas leis da natureza que agem no nosso cérebro. As nossas decisões livres são livremente determinadas pelos resultados das interacções fugazes e riquíssimas entre os milhares de milhões de neurónios do nosso cérebro: são livres quando é o interagir desses neurónios a determiná-las. Significa isto que quando decido sou “eu” a decidir? Sim, claro, pois seria absurdo perguntar se “eu” poderei fazer algo diferente daquilo que o complexo dos meus neurónios decide fazer: as duas coisas, como, no século XVII, compreendera com uma lucidez maravilhosa o filósofo holandês Baruch Espinosa, são a mesma coisa. Não existo “eu” e os “neurónios do meu cérebro”. Um indivíduo é um processo, complexo mas estreitamente integrado.
Quando dizemos que o comportamento humano é imprevisível, dizemos a verdade, pois é demasiado complexo para ser previsto, sobretudo por nós mesmos. Temos centenas de milhares de milhões de neurónios no nosso cérebro, tantos quantas as estrelas de uma galáxia, e um número ainda mais astronómico de ligações e combinações em que eles se podem encontrar. Não estamos conscientes de tudo isto. “Nós” somos o processo formado por esta complexidade, não o pouco de que estamos conscientes.
Aquilo que é especificamente humano não representa a nossa separação da natureza, é a nossa natureza. É uma forma que a natureza assumiu aqui no nosso planeta, no jogo infinito das suas combinações, do influenciar-se e trocar correlações e informações entre as suas partes. Quem sabe quantas e que outras extraordinárias complexidades, em formas porventura completamente impossíveis de imaginar para nós, existirão nos espaços infindos do cosmos…
Novos instrumentos permitem-nos hoje observar a actividade do cérebro em tempo real e mapear com impressionante exactidão as redes intrincadíssimas do cérebro. Ideias precisas acerca da forma matemática das estruturas que podem corresponder à sensação subjectiva da consciência são discutidas não só por filósofos como também por neurocientistas. Uma delas chama-se “teoria da informação integrada” e é um esforço no sentido de caracterizar de forma quantitativa a estrutura que um sistema terá de ter para ser consciente. Mas ainda não temos uma solução convincente e partilhada para a pergunta sobre como se forma a consciência de nós mesmos.
Julgo que a nossa espécie não durará muito tempo. Não parece ter o estofo das tartarugas, que continuaram a existir semelhantes a si mesmas ao longo de centenas de milhões de anos. Pertencemos a um género de espécie de vida breve. Os nossos primos já se extinguiram todos. Somos talvez a única espécie da Terra ciente da inevitabilidade da nossa morte individual: receio que em breve devamos tornar-nos também a espécie que verá conscientemente chegar o seu próprio fim ou, pelo menos, o fim da própria civilização. Como soubermos enfrentar, melhor ou pior, a nossa morte individual, assim enfrentaremos o colapso da nossa civilização. Não é muito diferente. E não será por certo a primeira civilização a entrar em colapso. Nascemos e morremos como nascem e morrem as estrelas, tanto individual como colectivamente. Essa é a nossa realidade.
A natureza é a nossa casa e na natureza somos a casa. Somos feitos da mesma poeira das estrelas de que são feitas as coisas e, tanto quando estamos mergulhados na dor como quando rimos e a alegria resplandece, não fazemos senão ser aquilo que não podemos senão ser: uma parte do nosso mundo.
Lição final a reter: na lição anterior Rovelli interroga: o que é que aquilo que sabemos ou não sabemos tem a ver com as leis que governam o mundo? E responde: (as coisas, como uma colher fria aquecer no chá quente ou um balão esvoaçar quando deixado à solta) comportam-se como devem, seguindo as leis da física, de forma totalmente independente do que sabemos ou não sabemos acerca delas. A previsibilidade ou imprevisibilidade do seu comportamento não dizem respeito ao seu estado exacto. Dizem respeito ao conjunto limitado das suas propriedades, com as quais nós interagimos. Por outras palavras, Rovelli repete aqui o que, na primeira metade do século XX, Bohr e Heisenberg haviam dito a propósito da relação entre a mecânica quântica e a natureza (ver lição nº. 2). Ecco qua...
NB: Salvo o meu comentário final e o critério de transcrição do que me pareceu mais importante, não acrescentei nada a esta última lição de Rovelli.
UM MUSEU
Manuel Joaquim
A Organização dos Reformados, do SINAPSA, Sindicato Nacional dos Profissionais de Seguros e Afins, no passado dia 29 de Setembro, realizou uma visita guiada ao Museu Nacional Ferroviário, no Entroncamento. O Transporte foi efectuado no comboio intercidades, entre o Porto e Entroncamento, e entre Lisboa e Entroncamento.
A visita foi muito interessante, pela forma como o museu está organizado, pela alta qualidade dos materiais expostos e pelo saber e capacidade de comunicação do guia, João Paulo Geraldes Marques. A história dos Caminhos de Ferro Portugueses está ali bem como uma parte da história de Portugal dos últimos 170 anos.
Em 28 de Maio de 1853, a Rainha D. Maria II, inaugurou o início da construção da primeira linha férrea de Portugal que pretendia chegar a fronteira de Espanha e ao Porto. A Rainha empurrou um carrinho com areia que com uma pá descarregou no chão. Foi o acto para o início dos trabalhos que foram executados por uma empresa inglesa. Passados três anos, foi inaugurada a ligação entre a primitiva estação de Santa Apolónia e o Carregado. Foi em 28 de Outubro de 1856 que foram percorridos os primeiros 36 quilómetros.
O Rei D. Pedro V e o Ministro das Obras Públicas Fontes Pereira de Melo, foram as personalidades a quem se deve o arranque dos caminhos-de-ferro em Portugal.
Ao longo dos tempos foram criadas comissões para estudar a implantação da rede ferroviária. Muitos projectos tiveram seguimento. Outros não tiveram os seguimentos previstos nos próprios projectos. No entanto, pode dizer-se que o território foi coberto por linhas, desde Trás-os-Montes, ao Alentejo e até ao Algarve.
O jornal do Rio de Janeiro, “Jornal Português”, de 27 de Setembro de 1927, publicou o traçado do caminho-de-ferro de Castelo Branco a Placência, com o título “DE LISBOA A MADRID em oito horas”. Em Setembro de 2022, uma jornalista fez esse percurso e demorou cerca de 12 horas. Passaram-se 95 anos. O que pensar?
Em 1988, o governo de então, de Cavaco Silva, publicou o “Plano de Modernização dos Caminhos de Ferro 1988-1994". O projecto da linha do Norte, passados estes anos todos, continua por realizar-se. A partir dessa altura, encerraram-se vias, principalmente em Trás-os-Montes, no Alentejo e noutras regiões do interior. Viseu perdeu o comboio em 1988. A linha do Tua quando foi desmantelada roubaram as travessas de madeira que entretanto apareceram em casas e quintas. Nos processos e julgamentos que andaram nos jornais, de sucateiros a oferecer robalos, apareceram referências ao desaparecimento dessas travessas. Mas não foi devidamente investigado. Foi mais um plano que custou milhões que foi para o lixo.
A Sorefame, fundada em 1943, que teve um papel fundamental na indústria metalomecânica pesada, que fabricava todo o material circulante, designadamente comboios e que exportava, começou a ser desmantelada nos anos noventa e extinta em 2001. Fez parte do processo de destruição de toda a indústria pesada que ocorreu nessa época; Siderurgia Nacional, Cometna, Mague e outras.
Há três dias, esteve no Porto, António Costa, Primeiro-ministro e Pedro Nuno Santos, Ministro das Infraestruturas e da Habitação, para apresentarem o projecto da linha de alta velocidade para ligar Porto e Lisboa, em 1hora e 15 minutos. É um projecto que já foi apresentado pelo governo de José Sócrates. Mas a obra só deve começar em 2024. Diversas personalidades que vivem à custa do orçamento do Estado estiveram presentes no acontecimento, que pelos vistos começou logo pela manhã. Os comboios actuais que fazem a ligação Porto-Lisboa não estão a ser aproveitados devidamente. Mas gostam de dizer que vão gastar muitos milhões para impressionar o Zé. Ao longo de tantos anos e de tantas promessas, pode aceitar-se todo este folclore?
O Museu do Entroncamento pode ser visitado com visita guiada por PAULA MOURA PINHEIRO no portal do próprio Museu ou no YOU TUBE.
Em Bragança existe também um Museu Ferroviário muito interessante. Está instalado na antiga estação.
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