Marques da Silva
A madrugada ia terminando o seu caminho com os primeiros rumores do trabalho. O silêncio que subjaz à noite começava a ser penetrado por um crescendo de ruídos. Rostos dormentes embarcavam nos transportes em direcção a um dia longo de canseiras. É o momento do dia em que os sorrisos ainda carecem de coragem. Com o correr do tempo a multidão alastra e move-se agora a um ritmo mais apressado. O sol despontou e ergue-se também ele mostrando a fadiga de uma volta ao planeta. O burburinho da estação com os olhares nos ecrãs, procurando linhas e horários. Sentamo-nos no longo banco de pedra, voltados para Oriente para onde nascem os raios de luz que nos acolhem e confortam. No horizonte surge, lenta e silenciosa a velhinha 1400 laranja que só quando acelera se denuncia com o trabalhar crepitante do motor. Acolhe-nos a carruagem vermelha e branca recuperada do cemitério onde a quiseram esquecer. Confortável e de janelas amplas que se podem abrir. Sentirmos de novo o vento a roçar na face, faz-nos viajar para outra época. A linha estende-se ao longo de casas e ruas enquanto a paisagem não se despe do tecido urbano, mas aos poucos vão surgindo os campos verdes, já sem o brilho do estio, sentindo-se até alguma tristeza outonal. Percorremos as terras do Sul do Entre-Douro e Minho, berço da nação e das suas primevas casas senhoriais, senhores feudais de largos senhorios. O Outono ainda não semeou as suas cores melancólicas. O verde predomina pelos campos de cultivo e as pequenas florestas arbóreas. Quando a composição se volta para Sul, penetramos no longo túnel de gratas lembranças de uma infância de há muito. O extenso túnel, o comboio vagaroso, as lâmpadas de uma luz amarela empobrecida iluminando rostos já cansados da viagem que já levava mais de duas horas. Por fim, daquela boca escura saía com fragor a poderosa máquina a vapor, rodando entre as paredes da montanha acelerando ainda um pouco mais até ao apeadeiro no final da curta recta. Ao descermos para o negrume da noite lá encontrávamos a senhora Milinha com um candeeiro para nos iluminar um pouco do carreiro ao longo da linha até à vetusta casa de pedra sem corrimão auxiliador nas escadas. Por ali ficávamos uma semana, entre o calor que descia da ramada extensa que cobria o terreiro enquanto uma frágil corrente de água cantava dia e noite tombando no tanque que aparava a fonte. Quando o comboio silvava corríamos pelo estreito caminho para fantasiarmos mundos enquanto olhávamos assombrados as vielas movendo as enormes rodas entre cores de vermelho e preto. Foi assim durante vários anos pelas terras de A Sibila, até que um dia tudo acabou. Agora a saída do túnel é rápida e já não se escuta o silvo que alertava para a presença do comboio que aparecia do interior da terra. A casa de pedra ainda lá reside, modernizada, com o granito coberto e paredes de um branco puro. Os tuneis sucedem-se e quando o olhar já procurava a nitidez da luz, vimo-nos sobre o Tâmega sobre uma albufeira que faz engrossar o caudal, elevando-o, fazendo-o adquirir a forma de lago a embelezar a paisagem. Por baixo da mansidão destas águas ainda resta a ponte onde os bravos do General Silveira detiveram os franceses de Soult. Entramos em declive, lento e prolongado e quando de novo tomamos o rumo para Leste, surge então o Douro, num dos seus expoentes de beleza. O olhar sente-se agradecido e as imagens sucedem-se sem que consigamos desviar a atenção. Procuramos gravar o que vemos, mas tudo é demasiado elevado para uma memorização suficiente e nítida. É um momento de grande majestade do rio. O lago imenso, as montanhas descendo com delicadeza sobre as suas margens. Em frente, enquanto a linha vai deslizando em curva, o Bestança, forma um recanto suave e no encontro das águas aparece-nos aquele pequeno núcleo de Porto Antigo, de onde não nos apetece sair quando por ali passamos. Ainda pasmados vemos surgir a brancura do rendilhado da bela ponte de Mosteirô. A partir daqui, temos o Douro e a linha. Deixamos de pensar e permitimos que o olhar saia pela janela e vá vadiar pelo encanto que a paisagem oferece. Como num álbum em que viramos a folha e sorrimos com todo o rosto ao ver fotografias que admiramos, é também assim este rio que desce para o mar enquanto subimos para a soberba dos socalcos vinhateiros. A linha curvando com delicadeza como se colocando numa posição que nos permita observar a enseada de Aregos, a quietude das águas, o rumor do silêncio como uma névoa bailando sobre o casario e a imaginação a levar-nos na companhia do Eça pela encosta acima. O comboio agora balanceia com doçura e o que nos rodeia é de certa forma ainda o século XIX com aquele ar romântico que nos faz pensar em aldeias perdidas no tempo. Quando acordamos, passávamos já pela aldeia de Agustina agora parte da cidade maior. Ultrapassadas as pontes, o fascínio persiste com mais delicadeza. Deixamos de pensar, limitamo-nos a usufruir de uma sensação irrepetível. O comboio, o rio e na margem oposta a mais bonita estrada do mundo como lhe chamaram. Há um misto de realidade e devaneio no que vemos e, sobretudo, no que sentimos. Uma última curva, a composição parece inclinar ligeiramente, enquanto atravessa a pequena ponte sobre o rio Pinhão que proveniente das alturas de Jales se entrega nos braços do Douro, rumando ambos sem pressa para o oceano distante. Em frente a ponte maior nos seus três meios arcos a proteger o tabuleiro e a pequena vila que continua sem perder o ar de aldeia. Ficamos enquanto a 1400 prossegue o seu caminho até ao Pocinho, desde que lhe vedaram a passagem até Barca d’Alva, esta pequena aldeia que nos traz sempre a memória de Adriano, “Foi em Barca d´Alva, quando o sol nascia, uma ceifeira cantava, cantando vertia, trovas na fronteira, quando o sol nascia”. Deambulamos pela rua com o pavimento revestido pelos fatigados cubos de granito que ali permanecem desde a infinitude dos tempos. A paisagem altaneira que protege o rio, ainda não se engalanou com as cores outonais. Passeamos o olhar pelos azulejos da estação com as suas representações vinhateiras, à sombra das quais tem vivido o Pinhão. Sente-se no ambiente o remanso dos tempos correndo com lentidão, como se o movimento parasse, se acomodasse no deslumbre do que os olhos vêem. Mas de facto, a vida prossegue. De regresso à estação, o sol estende-se como um afago sobre as flores que se escondem nos canteiros. Escuta-se uma curta buzina leve e a 1400, já se aproxima quase em silêncio para nos levar de retorno na companhia do Douro. Já não é a laranja, mas a azul a que leva desenhada as asas de uma gaivota. É no dorso dessas asas que nos sentimos na descida do Douro até à cidade junto ao mar.
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