Marques da Silva
Aguardar por alguém deve ser sempre um acto de paciência, não no sentido negativo da resignação ou da tolerância, mas da constância. Não devemos considerar o tempo de espera, um tempo perdido, mas antes de aproveitamento para reflectir, sobre a vida e o tempo que vivemos, o passado e o que há-de chegar. Há vários dias que te aguardava na pequena cidade siberiana que leva o nome do rio que corre um quilómetro a Sul, o Shilka. Este rio é a continuidade do Onon, após este receber a corrente do Ingota e muito mais para a frente quando encontrar o Ergun, faz nascer o longo rio Amur. Sabendo de antemão que vais acompanhar o Amur na sua viagem para o mar, não tinha dúvida sobre a tua passagem por esta cidade com cerca de treze mil habitantes que o transiberiano toca na sua passagem. Os dias foram passando na quietude do lugar que fui percorrendo, seduzido pelo trânsito dos longos comboios certamente a caminho de Vladivostoque e revivendo a viagem que até ali me levara após o nosso último encontro no Cáucaso, trazendo comigo as preocupações que deixaste transparecer sobre os tempos negros que sobrevoam a humanidade. As nuvens que toldavam a Europa encheram-se de escuridão como nos momentos que antecedem as grandes trovoadas e de certa forma ansiava por conhecer como o teu pensamento contemplava as convulsões que começam devagarinho a bater à porta das democracias coloniais. Uma manhã, descia a longa Ulitsa Oktiabrskaia para deixar que o olhar se perdesse nas colinas montanhosas que se vêem ao longe na margem direita do Shilka quando me apercebi da tua presença em sentido oposto. Aguardei com alegria contida que te aproximasses e quando olhaste para o horizonte vi nascer-te no rosto esse teu sorriso inconfundível que me faz sempre lembrar as palavras do poeta cantor, “aprendi a amar a madrugada que desponta em mim quando sorris”. Senti que chegara o momento de escutar as tuas vivências. Sentamo-nos no Baikal que não cheguei a perceber se era café restaurante ou restaurante que servia café, mas pouco importava, o mais importante é que estávamos em sossego. Olhava esse teu silêncio que antecede sempre as tuas palavras e deixei que o tempo deslizasse. “Quando penetramos nas montanhas Khentii”, disseste tu como se estivesses a continuar uma conversa e não no seu início, “sentimos que penetramos num espaço sagrado. Os mongóis são muito zelosos e a ideia de que alguém vai atravessar aquele território protegido deixa-os em sobressalto e se vais sozinho e sem guia, percebemos a incredulidade que se estampa nos seus rostos. São dias inteiros caminhando por uma paisagem soberba. A quietude que se sente quase nos imobiliza. Os lagos, a vegetação, os cursos de água, sucedem-se desenhando mantos de beleza que devido ao facto de o nosso movimento apeado ser lento, penetra-nos de tal forma que parecem fotografias coladas no nosso cérebro, como se desfolhássemos um livro e cada página nos revelasse um segredo. Quando por fim, encontrei a nascente do Onon, numa espécie de pântano impossível de caminhar, senti-me fisicamente cansada e por ali me deixei ficar longas horas em repouso contemplativo. Tentei esvaziar o pensamento, mas não o alcancei totalmente. Ao visitar o passado, ocorreu-me uma descrição de Malraux numa das suas obras. Dois generais republicanos conversavam num fim de tarde após uma batalha ganha pelo exército que comandavam. Faziam-no numa igreja que naquele momento era utilizada pelas forças governamentais. Em certo momento, escutam sons de música que sobe pelas paredes e se espalha pela abóbada. Um soldado tocava no órgão um Requiem e ambos se evadiram dos seus diálogos guerreiros e deixaram que o pensamento se diluísse na beleza dos sons. Na nascente do Onon senti essa música invadir-me quando pensei na Europa.” O teu discurso fluído até então, teve uma paragem como se tivesses tido necessidade de revisitar um espaço para além daquele onde nos encontrávamos. Ao fim de alguns minutos, regressaste com uma voz sumida, e quase num murmúrio ouvi-te fazer uma pergunta, “já pensaste como a humanidade tende a repetir os erros? Há oitenta anos atrás, os líderes das nações coloniais correram a Munique para cumprimentar a serpente e agora correm para a margem do Dniepre em abraços esfuziantes. Bem dizia Malraux, ‘Sempre vi as democracias intervir contra tudo, excepto contra os fascismos’. Que palavras sábias. Fazem-nos caminhar à beira do abismo e exigem que acreditemos que estamos a atravessar uma planície. Sãos uns bastardos. Sabes, os comandantes que foram surpreendidos pelos sons do requiem, falavam sobre Unamuno”. Mas Unamuno não estava do lado da infâmia golpista?, arrisquei de forma um pouco provocatória para lhe incentivar o pensamento. “Unamuno era um intelectual do século XIX e a aparente desordem da República perturbava-o, mas cedo percebeu que os que falavam em nome da pátria, de Deus e da família, eram apenas o exército da barbárie e não dúvidas em enfrentar a escumalha que se alojou no território sagrado da sua Universidade. Só a sua grandeza intelectual permitiu que dissesse a essa escória humana que foi Millan Astray, ‘O senhor é um aleijado, como Cervantes, mas sem a sua grandeza, e procura um alívio sinistro ao seu aleijão causando mutilações à sua volta’. Astray além de fascista era um acéfalo, violento e sem escrúpulos”. As horas fluíam tranquilas enquanto te escutava e olhava o teu rosto onde se liam preocupações que este tempo nos sobrecarrega, não o tempo mas essa gente que se apoderou dele e nos condiciona o presente e o futuro como já o fez no passado. Foste descrevendo o teu lento caminhar até Shilka e agora ali estávamos prontos para descer ao longo do Amur. Quando te afastavas ainda te perguntei por leituras, o que lias. “Ler? Já não leio muito, a não ser sobre o mar, de quem sou, cada dia que passa, uma amiga mais íntima…”. Sorriste e compreendi que respondias com as palavras de Unamuno.
Nota – As citações foram extraídas da obra de André Malraux, "A Esperança".
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