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01/12/22

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva





O primeiro terço do trajecto sempre foi percorrido de forma breve, quase sem nos apercebermos dos territórios envolventes. Após a cidade maior a estrada já tantas vezes fora por nós viajada que a memória perdera o registo. Entretínhamo-nos a rever o mundo e as suas notícias enquanto subíamos numa sucessão de curvas e lugares. Houve sempre uma paragem para um café, antes de abordarmos a segunda parte do percurso. Começavam então a ficar visíveis os picos graníticos da montanha do outro lado do Cávado. Destacando-se na retaguarda da vegetação e das aldeias, sucediam-se com uma grandeza atemorizadora e quase impossível de alcançar. Olhávamos com enlevo os recortes cinzentos que pareciam tocar as nuvens. Na parte final do caminho, sentíamos esse apelo que carrega o prazer de jornadear por trilhos e veredas num misto de liberdade e distância da mundanidade. Quando o nosso olhar pousava sobre o lago de água contido no perímetro da albufeira, algo começava a mudar nas nossas emoções. Passávamos a pequena aldeia com a sua vetusta capela em pedra e a torre sineira lateral e quase logo, vislumbrávamos o pequeno e longínquo ponto branco, como um marco reluzente, que se destacava nos cinzentos acastanhados da pedra. Alguns quilómetros depois iniciávamos a subida que nos conduziria aos mais de mil metros de altitude. Verdadeiramente era esse o momento em que algo em nós se começava a transformar, a expandir para além de sentimentos incomensuráveis. A beleza do planalto com as suas ervas rebeldes entre o verde e o amarelo, a sua extensão de horizonte que parece raiar o infinito, a estrada como um traço que se alonga para além do que o olhar alcança, o seu silêncio dormente, colocava a memória num êxtase que transbordava o presente. Era nesse instante que, como um movimento apaziguador, me aparecia a música de Savall celebrando as exéquias dos Médicis. Eram sons serenos, profundos que penetravam como um bálsamo de enlevo deixando-me a deslizar sem tempo e sem idade. Surgiam na perspectiva do olhar imaginado, as ruas de Florença invadidas por uma tristeza plúmbea, por cânticos de prece e dor, de lágrimas silenciosas de raiva e pesar, as belas paredes de Santa Maria del Fiori, estremecendo com o murmúrio pesado dos mantos de padecimento, amparavam no seu interior os apelos à intervenção divina. Atravessávamos o planalto na dolência dessa música que nos transportava para as ondas de choque que cobriram as ruas empedradas da cidade toscana, tanto como aquelas que acompanharam as exéquias fúnebres do rei de Boa Memória, nas ruas mouriscas de Lisboa entre círios e velas. Sentíamos uma espécie de conforto que nos invadia a alma e não nos abandonaria nas horas seguintes. Envoltos nessa névoa de fantasia, atravessávamos a aldeia alcandorada nos mil e cem metros da montanha, voltada para o vale como afrontando os recortes da cordilheira que se planta a seu lado. Era uma protecção e um desafio. Descíamos então até ao primeiro curso de água saltando e cantando entre as pedras do leito, semeando humidade e cobrindo a pedraria de camadas de musgo. À direita e um pouco para o interior, sobre uma pequena colina, repousam os alicerces da antiga aldeia medieval, Júris de seu nome. Atravessávamos o pequeno desfiladeiro entre arvoredo frondoso e espesso. Sobre pedras soltas, vencíamos outros dois pequenos ribeiros e penetrávamos num bosque de cores múltiplas sobre o coberto de folhas que impedia que o azul celestial chegasse até ao nosso olhar. Era o momento dos sonhos e a memória viajava até aos tempos da infância, da pureza dos dias, dos personagens que ficaram retidos no pensamento com o ar de bondade com que os celebramos. Não existia malícia nesses anos de aprendizagem e ainda era possível acreditar em tudo e as estrelas apareciam como luzes eternas que se acendiam na escuridão espacial e nos olhavam com esse sorriso que só os anos infantis podem apresentar. Mas se saímos da infância para a adolescência num instante tão breve como o de uma porta que se abre, também aquele bosque terminava e expunha de súbito a rudeza do que se seguia. O reduzido pedaço de terra que desenhava o caminho, abria-se então para o alto, a vegetação desaparecia e  paredes alvas no alto da fraga estavam agora mais nítidas e a uma altura, que olhada de ali, parecia assustadora. Talvez pelo empinar do caminho, a memória regressava ainda ao passado, ao tempo em que a avó subia a rua e entrava naquela quinta tapada por muros altos e me permitia iniciar uma corrida para usufruir de tudo o que via. A alameda de glicínias, os anexos ao fundo cobertos de buganvílias de múltiplas cores, mas o mais importante era o imenso espaço de plantas que quase cobriam um lago mágico no seu meio, com uma ponte e a água coberta de nenúfares com peixes grandes e vermelhos espreitando no intervalo daquelas plantas circulares. Quando a avó chamava terminava subitamente o feitiço. Entretanto, os passos tornavam-se agora mais lentos, mais cadenciados, as palavras davam lugar a períodos longos de silêncio e parávamos para refazer a fadiga e olharmos enlevados a natureza que nos envolvia. A albufeira surgia já no horizonte, os picos cortados da montanha, poderosos, rodeavam agora o trajecto e o trilho tornava-se mais escarpado, mais exigente. Numa colina lateral os garranos pastavam sem pressa e sem receio. Por fim, alcançávamos o cume e os últimos metros apresentavam uma escada que nos transportava para os monumentos maias. Chegávamos então àquele naco de pedra plano ocupado pela capela com as paredes imaculadas de branco, resistindo às intempéries do Verão e dos invernos agrestes. O nosso olhar estendia-se do cimo daqueles mil e cem metros de altitude, chegava até à aldeia, ao ínfimo espaço do mosteiro, das casas de Outeiro sobrepostas à grande reserva de água e completava os 360⁰ de deslumbramento nas paredes da montanha erguidas como uma barreira, uma fortaleza impenetrável. Sentíamos essa liberdade imensa que se alcança com a altitude e nos lugares inóspitos. Um dia, voltaremos a subir à fraga uma última vez, em direcção ao infinito e à eternidade. Talvez então, chegue até nós o cântico milenar dos monges que há séculos penitenciaram junto ao regato de água que corre sem descanso junto ao mosteiro ou quiçá, a voz do muezim que chamava à oração no deserto do KaraKum quando por ali passamos. Ambos se dirigem a Deus. Por mim, ficarei com a música e um olhar imperecível pela beleza que ali vive. 

Quero que a embriaguez da minha tristeza se dissipe, pois compreendo que, mesmo que um dia volte aos sítios de onde venho, nada hei-de encontrar já do que lá deixei…” 1



Sinto um conforto imenso quando em meu redor escuto tantas vozes clamando contra a guerra. Contudo, quando procuro melhor, quase não encontro ninguém que tenha produzido o mesmo clamor exaltado nas guerras de agressão dos últimos 30 anos e das centenas de milhares de mortos que ficaram pelo caminho, nem encontro alguém que nos últimos 8 anos tenha gritado uma palavra que fosse pelos 14 mil mortos, 30 mil feridos e mais de 2 milhões de refugiados na guerra que vem ocorrendo no Donbass. É verdade, sem dúvida que é verdade que uma guerra não pode justificar outra ou outras guerras. Mas o que é ainda mais verdadeiro é a insuportável e imensa hipocrisia daqueles que ao longo do tempo, por comodismo, distracção, olhar para o lado, desinteresse ou cobardia, ficaram calados. 
Os homens brincam à tragédia porque não acreditam na realidade da tragédia que está a ser representada no mundo civilizado” 2


1 - Isabelle Eberhardt, em “Escritos no deserto”, Relógio d’Água, Lisboa, 1990
2 - José Ortega y Gasset

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