António Mesquita
"A vida de Oharu" (1952), de Kenji Mizoguchi, é um destino de perseguição e má sorte. O homem que ama é decapitado por ser de condição inferior. Por causa disso é exilada com os pais. Um nobre sem descendência compra o seu ventre à família e o filho é-lhe retirado. O pai que especula com essa ligação ao Daimiô arruina-se com o seu regresso e obriga-a a prostituir-se. E Oharu sempre passiva e sofredora. Mas, de repente, surgida sabe-se lá de onde, uma pequena maldade. A mulher do negociante, por ciúme, obriga-a a cortar o cabelo para a desfear. Como vingança, Oharu treina o gato para arrancar a peruca da dona e revelar a calvície ao marido. Mas esta maldade não perturba o retrato moral da heroína, caíndo sob a alçada do "instintivo", quase atribúível a uma Afrodite japonesa, se alguma houver nesse panteão.
A ideia do melodrama não chega, de facto, para explicar este filme. inspirado numa novela do século XVII, de Saikaku Ihara, chamada "A Mulher que Amava o Amor", é mais uma representação da fatalidade e da resignação búdica do que do amor tal como o concebe a cultura ocidental.
Quando menos se espera, o maravilhoso é possível, para logo desaparecer. Sobressai uma mística da aceitação. A pouca sorte acaba por tornar-se uma qualidade do ser que da vida só conheceu maus-tratos. A obediência aos fados torna-se uma virtude. Oharu contempla os ídolos com figuras dos discípulos de Buda, e entre eles vê um rosto conhecido. O sacrifício do amante coloca o amor fora da órbita terrena. Nada pode contaminá-lo. Oharu há-de atravessar uma série de provas terríveis, em que a sua vontade não joga nenhum papel. Submeter-se às leis classistas e ao despotismo paterno são um mesmo calvário. Depois do parto, e perante a animosidade da mulher do nobre, os oficiais da casa, atentos às razões do poder, afastam-na por fim dum chefe seduzido para além da sua força e do seu dever.
O casamento com o negociante de leques é outro parêntesis que só parece existir para mostrar o curso fatal dos acontecimentos, já que o marido parece amá-la sinceramente, mas é assassinado. A história de Oharu é uma expiação sem crime. Tudo parece suceder com a inflexibilidade dum código que não permite excepções. E por aí, o drama da filha do samurai que acabou prostituta ganha uma qualidade não moderna, no sentido de não ser limitado pelas nossas categorias, mas surgir duma inspiração que atravessa o tempo.
O filme conta-nos a opressão da mulher e a injustiça da sociedade de classes do tempo. Visão que não pode deixar de ser anacrónica e influenciada pelos nossos preconceitos morais e políticos (e dos japoneses dos anos cinquenta). Algumas réplicas de Oharu a favor da liberdade de amar e da inocência do amor, ou do amante decapitado contra as classes são quase chocantes pela sua falsa actualidade. O cinema de Misogushi está nos antípodas da arte “engagée” e, não obstante, pelo conflito tão vivo entre a política do conto popular, em que as peripécias acontecem sob os auspícios duma divindade e a ausência de dialéctica do real, os problemas de hoje ganham uma origem que os condena metafisicamente, é caso para dizer. O papel dos mitos foi sempre o de criar a origem das coisas. Devemos resignar-nos a recuperar o passado apenas pela poesia. Nesse sentido, “A vida de Oharu” respira verdade e beleza eterna.
Uma velha prostituta reflecte no seu passado, com mais baixos do que altos, sem cólera no seu coração e sabendo-se por todos condenada a priori. Na luz indecisa, apenas a marcha dos juízes inflexíveis se ouve na claridade submersa. Mas Mizogushi perdoa a uns e a outros.
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