Marques da Silva
António Borges Coelho (nasceu em 1928) |
Há frases que nos ficam para a vida inteira. A memória retém-nas, como afixadas num cartaz que lemos em todas as ocasiões em que passamos. São frases marcantes que caracterizam de forma excepcional, um tempo, uma época ou um acontecimento. A que ficou em registo gravado no granito da memória, exprimia um acto, um momento determinante, o explodir de uma revolução. “Mal caiu a tampa do caixão” assim escreveu António Borges Coelho no seu livro emblemático sobre a revolução de 1383. O filho de D. Pedro, rei este que repousa na magnitude de Alcobaça ao lado de Inês a quem sempre amou, O Formoso de cognome, vivera um reinado atribulado, entre guerras perdidas e casamentos anulados. Já moribundo, sentia o reino em ebulição. Os artesãos, os mestres dos ofícios das novas cidades, a burguesia mercantil, ferviam em revolta, reclamando mudanças essenciais e transformadoras. O povo mínimo esgotara a paciência perante um Estado que se degradava, exangue pelas sucessivas guerras, pelas consequências da grande peste e pela desorientação da governança. E assim foi que “Mal caiu a tampa do caixão”, sobre o cadáver do rei morto, a revolução explodiu, a barragem deixou de conter as águas e estas invadiram as cidades do reino. Nada ficaria como antes. O historiador mostra-nos naquelas páginas e através de palavras latejantes, todo o desenrolar dos acontecimentos, mas o que a minha memória reteve foi aquele instante, aquela faísca, aquela chama que aguardava apenas um sinal para se transformar na imensa fogueira que desaguaria naquele acontecimento tão exaltante que fez alvorecer a ideia de pátria e de nação e deu um novo sentido ao reino. As velas das caravelas que percorreriam os oceanos foram tecidas num fim de tarde em Aljubarrota. A revolução foi o momento primeiro em que a burguesia e o povo se aproximaram do poder. “Não chegaram ao céu, mas arranharam as nuvens”, disse-nos ainda Borges Coelho. Seiscentos anos depois, de novo o povo, voltaria a arranhar as nuvens. A vida deste historiador tem sido longa como a história que relata. Investigou, historiou, escreveu e descreveu a vida em poemas. “Sou barco abandonado, na praia ao pé do mar”, escreveu enquanto sentia o tempo parado e a vida a escoar-se, no interior das muralhas da masmorra de Peniche, entre aquelas paredes sombrias nas quais a liberdade voava aprisionada. “Ouço o fragor da vaga, sempre a bater ao fundo” e assim viveu esses dias em que a maldade reinava sobre a pátria amordaçada. Nunca perdeu a esperança, “Ó mar, venha a onda forte, por cima do areal e os barcos abandonados voltarão a Portugal”. Recusou a fuga vitoriosa para poder seguir a vida de estudo da História e não ter de mergulhar o pensamento na noite perigosa da clandestinidade. E entre uma e outra das prisões do ditador, conheceu o amor da sua vida que o haveria de acompanhar ao longo de mais de sessenta anos. Ela era algarvia, ele transmontano. Ela lutava pela liberdade e direitos das enfermeiras, ele pela liberdade do pensamento e da vida. Entre as duas liberdades, a humanidade pútrida que assentava nos corredores do poder, apesar das sucessivas prisões infamantes, não dobrou a vontade de voar que ambos tinham e pela qual lutavam. Casaram na prisão e aguardaram pelo regresso do outro. Quando a liberdade chegou naquela “madrugada que eu esperava”, como nos disse Sophia, foram-lhe restituídos os direitos sonegados pela miséria de um poder fétido e miserável. Foi o tempo em que nos levou em viagem pela história da presença árabe no território que habitamos. Não da presença de um invasor, mas a expansão de um povo que viria a ser expoente da cultura europeia naqueles séculos em que entre nós habitou. E hoje, o Estado em que vivemos, atribui a nacionalidade aos descendentes dos judeus expulsos, mas ignora, os descendentes dos árabes, expulsos na mesma época e em número maior do que aqueles. Entrou ainda pelos corredores medonhos das prisões da inquisição e relata-nos o que leu e ouviu, nesses tempos sombrios em que, pretensamente, em nome de Deus se espalhou o terror. António Borges Coelho, para além da imensa obra sobre a História que nos vai deixando ainda encontrou tempo para a literatura, entre a qual, nesse soberbo “Youkali”, o país dos nossos desejos, nos faz viver os dias perigosos dos que resistiam nos anos de chumbo desse poder maligno que povoava a república de fétidas ameaças e que hoje pretende ressuscitar embalado no berço pútrido dos netos que pariu e sobreviveram escondidos em máscaras abjectas. A mão do historiador ainda não se deteve. Prossegue o seu trabalho de nos comunicar os seus estudos, investigações, reflexões e análises. A sua companheira de sempre, deixou um imenso espaço vazio, de silêncio e de saudade, como só os grandes amores permitem. Para si, como se escreveu, numa humana entrevista do Expresso, o comboio continua a passar a cada vinte minutos na Linha de Cascais e a pena que sempre foi o seu utensílio de ofício, prossegue esse labor de registar a vida humana através dos tempos.
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