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01/06/21

WESTERNOMANIA

António Mesquita


Shane (1953)


Compreendo o que continua a seduzir nos bons westerns: é Homero. 

Mas o cristianismo passou por aqui. A maldade não existia no grego. Eram as paixões dos deuses que enfureciam os homens e os entregavam a um destino inelutável.

Mas há uma fatalidade na mitologia americana que é a do espaço. A natureza cerca homem e cavalo sob a forma da distância, da fome e da sede, ou do índio hostil e incompreensível. O desfiladeiro, lugar da emboscada por excelência, transporta-nos à situação de Ulisses entre Cila e Caribdis. A aventura é exterior, longe da casa e da segurança. O cowboy, como o guerreiro, não sabe o que é o dia de amanhã. As certezas domésticas, os ritos da casa são coisas para lembrar diante do fogo. As saudades do país ou do rancho que ainda não se tem povoam os momentos de repouso e as confidências. 

O sexo está ausente deste universo viril. A passagem pela alcova do saloon é uma espécie de renovação identitária, uma conferência colectiva. É um belo movimento o do cavaleiro e da sua montada. Eles formam um par cheio de sabedoria. Não era Chiron, o mestre de Aquiles, um centauro? A hesitação e a dúvida não são estados equestres. Montado, o homem sabe para onde vai, e a extensão da planície não perdoa divagações. Uma necessidade nua porque o homem não conhece o conforto. O sentimento de que o animal e a terra são as únicas riquezas. Tudo prepara o futuro leitor da Bíblia para a frugalidade e a religião. Em todo o cowboy há um camponês desesperado. Anunciar a morte dum companheiro pode ser encontrar um rancho e uma viúva bonita. Mas a Sierra Madre espreita os ladrões do ouro das suas entranhas. 

O homem é um ser que depende de tudo: do seu cavalo, do fogo, da sombra da árvore, do riacho, da sorte, enfim. O western dá-nos uma figura sem história. O bandido é aquele que perdeu o sentido das coisas e segue um chefe que o arrasta para a forca. No meio desta loucura, há um homem forte que desafia as leis da sobrevivência, iludido pelo medo dos outros. O bando é uma sociedade que se enche com o seu próprio discurso, e se alia a uma natureza aparentemente cúmplice. A caverna dos ladrões de gado só tem pensamentos de insegurança. O próprio do fora-da-lei é deixar-se apanhar pela imaginação, antes dum adversário tranquilo e civilizado pelas mulheres lhe deitar a mão. 

O duelo final entre o herói e o vilão deve deixar bem claro de que lado estão os deuses. À diferença da tragédia e dos poemas homéricos, o western é moralista. O lado do bem triunfa sempre. Mas não sem que se ofereça ao espectador um comentário pragmático: o herói usava uma pistola de oiro ou era melhor atirador. Não importa. O nosso mundo tão cheio de defesas e de artifício é um anti-western.

Temos quase a sensação de que o homem pode viver sem paixões, com uma ou outra fuga de pressão. Perante o filme de cowboys, descobrimos uma idade de ouro que é também a infância de cada um. Tudo se começa a dividir pelos nomes que em criança se pôs às coisas e às pessoas. Os bons e os maus são a primeira lição de moral. E o adulto, quantas vezes não tem de regressar no tempo para compreender?

Então por que é que se deixaram de fazer westerns? Só talvez a aventura espacial conserve alguns elementos do género, mas com a tecnologia omnipresente, como outra natureza, às vezes, hostil, como no filme de Kubrick.

As modas não explicam tudo. Desde os tempos do cinema mudo que o filme de cowboys marcou a sua presença e sempre teve os seus admiradores, entre os quais, inesperadamente, o próprio Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, mais conhecido por Staline, segundo nos conta a filha, Svetlana.

A decadência do género era já evidente nos filmes de Sérgio Leone e o seu "western-spaguetti".  A grande mudança verificada na cultura americana por força da massificação dos media acabou por desenraizar a ligação tradicional com o território que era a essência do pioneirismo.

Hoje parece que são os novos imigrantes asiáticos, segundo o testemunho cinematográfico de, por exemplo, Lee Chung, com o seu admirável "Minari", que carreiam esse pioneirismo anacrónico, temos de o dizer, em tempo de internet e das redes 5G.


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