Marques da Silva
Petropavlovsk –
Amanhece. Sente-se o romper do dia na luminosidade que renasce sobre os
pequenos gestos da natureza. Quase em silêncio o IL96 desliza lentamente sobre
a pista. Mais uma viagem de tantas que não foram muitas, com essa expectativa,
sem ser ansiedade, que pousa sobre o corpo antes de sentir que se larga do
chão. Em frente vejo a magnitude dos gémeos, os dois vulcões que vigiam a
cidade capital, o Korialski nos seus imponentes três mil metros e o Avachinski,
com menos trezentos metros. Uma auréola de nuvens forma um anel abaixo do pico
de ambos, como um colar de Saturno. A neve ainda repousa por parte
significativa das suas encostas mais altas que o degelo vai lento. À direita e
ao fundo, Petropavlovsk desperta. Neste quase rumor das turbinas, ocorre-me
lembrar uma outra viagem, quase cinquenta antes, ao amanhecer de um dia de
Julho, num outro aeroporto a cerca de sete mil quilómetros deste. Era uma bela
manhã e o início do regresso à pátria após uma longa ausência. Uma viagem com
várias paragens, em direcção a um país que saía das sombras pesadas de uma
noite extensa, emergia numa das primaveras com maior beleza. O novo e o
desconhecido aguardavam-me. Era um renascimento, um começar do princípio. Quantos
anos passaram, quantos acontecimentos vividos, sonhos adiados, esperanças
diminuídas, quantas lutas e combates. Apesar dos dissabores, das maldades, dos
pequenos ditadores e das malfeitorias com que tentam rasgar o sonho, foi uma
vivência histórica ímpar e como escreveu e cantou Violeta Parra, gracias à la vida que me há dado tanto!
Olho de novo o vulcão e descem sobre mim as palavras de Raul Brandão, “Contemplo a casinha, as árvores – o meu
sonho – e não desejo mais nada. Isto é completo e perfeito… Mas pouco e pouco
vem-me uma saudade… É ainda quase nada, e insisto. Toma corpo e avoluma-se…”.
A Península de Kamchatka é dividida a meio em toda a sua extensão por uma
cordilheira, como uma espinha dorsal a sustentar o seu território. Do centro
para o Sul outro conjunto de montanhas vive em linha paralela à cordilheira
central. Pelo meio estende-se um vale formoso e vasto. Uma estrada estende-se
ao longo do mesmo num percurso de quinhentos quilómetros. Entre estas
montanhas, erguem-se soberbos, imensos vulcões. São cento e sessenta no total e
vinte e nove deles activos. Destes, dezanove, encontram-se classificados no
Património Mundial pela UNESCO. Com frequência procuramos alcançar lugares
cujos caminhos desconhecemos e tão pouco encontramos o seu início. Olhamos para
a geografia desta península e entre montanhas e vulcões parecem existir vales
luxuriantes, mas os primeiros desenham correntes de água que na Primavera
alcançam torrentes caudalosas e quase impossíveis de transpor para quem viaja
só. Alcançar o vale dos geiseres foi uma odisseia, uma dessas aventuras que não
se olvidam, pelo inesperado, o belo e o desconhecido. Vencer os quilómetros que
separam a cidade de Milkova do jovem vulcão Kirrpintch no sopé do qual vivem os
geiseres, num primeiro momento quase conduz ao desânimo. Mas há sempre uma
solução quando a procuramos, embora neste caso implicasse três dias de dura
caminhada. A primeira resposta, encontramo-la no final da Rua Lenine em
Milkova, a via que nos levou à travessia do Kamchatka de largo caudal e forte
corrente. A sabedoria seria daí em diante saber contornar os pântanos que o
degelo fez nascer e seguir a trajectória dos rios entre vegetação verdejante
com a pujança que a natureza primaveril lhes acrescentava e as florestas de um
verde luminoso com as encostas cobertas de árvores de diversos tamanhos, em
manchas, salteadas como em desenhos arbitrários, mas cujo conjunto tornam a
observação admirável. O espanto que nos surgiu pelo caminho, acentuou-se no
vale, ao longo do passadiço que nos levou a percorrer grande parte dos noventa
geiseres e fontes termais. O cromático da vegetação aliado aos esguichos que se
elevavam no ar provindos das bolhas de lama, criavam um ambiente sobrenatural.
O silêncio envolvente, os sussurros da água fervente, transmitem um
apaziguamento que nos deixam no limbo da perfeição e Raul Brandão volta de novo
em visita, com palavras sentidas, talvez, num momento idêntico, “No alto, o céu não pode com o peso das
estrelas e a cidade, em baixo, cheia de luzes, lembra uma maravilhosa
constelação. Estas noites húmidas de luar, junto a uma mulher amada, são das
coisas mais extraordinárias que pode haver no mundo, porque a volúpia do
exterior está de acordo com a exaltação íntima e o universo vibra dentro de nós
até à dor.” As luzes da cidade, não necessitei delas e as estrelas,
imaginei-as, o restante estava ali tudo. No regresso a Milkova nem a imensa
fadiga apagou os faróis de beleza que tinha encontrado dias atrás. Segui ainda
duzentos quilómetros para Norte ao encontro do Kliutchevskaia, o mais elegante
dos vulcões na excelência dos seus quatro mil e oitocentos metros. O olhar
encontrou-o ainda na estrada, quando me aproximava da aldeia de Kozirievsk e
num momento em que a verdejante vegetação que rodeia a via, se abriu. Após
passarmos largos dias numa irmandade com uma natureza tão pura, de uma rebeldia
refrescante, difícil se torna continuar a classificar os desabroches de
formosura que se seguem. Limitamo-nos a observar em quietude a plenitude do
Kliutchevskaia, antecipando o que seria a tentativa de subida nas suas alturas.
O pico, agreste e altivo, sem competidores. A neve escorrendo pelas ladeiras
como sobrando de um bolo. Os espaços já libertos do espesso manto de neve,
mostrando a pedra nua, castanha e preta da lava que deslizou pela última vez. A
espécie de musgo que cobre como uma capa as pequenas colinas do sopé, escondem
outro magma mais tardio. Tudo parece simples e riscando a perfeição. O cansaço
venceu-me e já não alcancei o grande desejo de chegar até à pequena cidade de
Tigil para lá do meio da península e conhecer a sensação de isolamento, não no
interior do nada, mas longe de tanta coisa que quando olhamos melhor para a
vivência que temos, percebemos que é tanta coisa que serve para tão pouco. O
avião está agora no princípio da pista e os motores rodam a velocidade maior.
Começou a deslocar-se no sentido oposto à direcção que vamos seguir. Acelerou e
tal como o IL62 de há tantos anos atrás, também este Iliushin 96 com a potência
dos seus quatro motores se eleva no ar e sobe sobre a Península de Kamchatka.
Estamos a meia altura do Korialski quando se inclina para a esquerda e nos
mostra uma última vez Petropavlovks. Rumamos a Oeste e estou a caminho de casa.
As citações que aparecem, foram retiradas do livro, “As Ilhas desconhecidas” de Raul Brandão,
Perspectivas & Realidades, Lisboa, sem data.
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