Mário Martins
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Agora que, aos olhos da opinião
pública, as vicissitudes do processo judicial em curso contra um ex-primeiro
ministro arrastam igualmente o sistema de justiça para o banco dos réus, afigura-se
oportuna uma reflexão mais vertical sobre aquele que é um dos três poderes
clássicos do estado.
1. Sendo os humanos uma criação, na sua essência enigmática e inacessível, natural para uns, divina para outros, não têm culpa, em qualquer dos casos – mesmo quando a mitologia cristã, concebendo Deus como um ser perfeito, passa a responsabilidade da culpa para o Homem - de ser como são, irremediavelmente determinados por uma natureza portadora, ela própria, do bem e do mal. Daí a conhecida frase do célebre físico e pensador Albert Einstein: “Filosoficamente um assassino não tem culpa, mas não gostaria de tomar chá com ele”. Esta condição domina todos os aspectos da vida humana, de que o sistema de justiça não pode constituir excepção. Por isso se diz que a justiça humana é imperfeita.
2. Mas como vivemos em sociedade, é preciso regular e proteger as relações entre os seus membros com um sistema de justiça, ainda que, por natureza, defeituoso, quer quanto à concepção e acervo legal quer na sua aplicabilidade.
3. Tal sistema não é determinado pela área da justiça mas, quer em termos de leis quer em termos de meios, pela política, essa arena onde se digladiam valores e interesses contraditórios, quando não antagónicos, e onde, para lá das oportunidades avulsas que confere, a corrupção se torna ou pode tornar sistemática. Dizia Agustina, talvez rendida à realidade, que “A corrupção é um vazio dos povos que sempre há que encher para solidificar os objectivos maiores (A Monja de Lisboa)”.
4. No campo da justiça penal, e exceptuando os casos de confissão, os tribunais não condenam ou absolvem com base no apuramento da verdade (o conhecido causídico Ricardo Sá Fernandes afirmava, em 2017, ao semanário Expresso, que “Não há sítio onde se minta tanto como nos tribunais”), mas sim na prova produzida pelas partes em confronto e na convicção do(s) juiz(es), sendo que a prova e a convicção nela assente poderão coincidir ou não com a verdade. É esta potencial distância entre os factos e a sua prova que, por vezes, dita a absolvição de culpados e a condenação de inocentes.
5. Nos presumíveis casos de corrupção, a justiça não pode ser rápida, e quanto mais complexos eles forem, maiores serão a lentidão dos processos judiciais e o risco de prescrição. Quando os alegados crimes prescrevem, seja por falta de meios, por desadequação dos prazos, por incompetência da investigação, ou por má-fé, é o sistema de justiça que fica desacreditado e, com ele, o regime político.
6. O processo de investigação não pode usar todos os meios, salvo os permitidos por lei, para compor uma acusação a ser julgada pelo tribunal. Por isso, o recurso a escutas telefónicas tem que ser autorizado por um juiz, sob pena de anulação da prova, e a detenção ou a prisão preventiva, porque decretadas fora do ritual de regras de um tribunal, devem cumprir estritamente as condicionantes legais, em termos de razões e de prazos, apesar de essa obrigação não evitar a eventual discricionariedade da polícia, no caso da detenção, ou do juiz, no caso da prisão preventiva. Essa discricionariedade tanto pode estar presente no abuso da privação da liberdade como na renúncia injustificável dessa privação.
7. Tratando-se de figuras públicas, em especial se detentoras de altos cargos do estado, é natural e desejável o interesse jornalístico. No entanto, além de o tratamento jornalístico dever seguir as regras deontológicas da profissão, a sua investigação deve ser independente e paralela ao processo judicial em curso, enquanto este estiver legalmente protegido pelo segredo de justiça. Lamentavelmente, não é isso que se tem passado em Portugal nos processos judiciais de figuras mediáticas, por culpa, em primeiro lugar, do poder judicial que, na hipótese mais benigna, se mostra incapaz de guardar o segredo de justiça e de pôr fim à promiscuidade com a comunicação social. Assim sendo, competiria ao poder legislativo e aos órgãos que superintendem o sistema judicial tomar as medidas correctivas adequadas mas, infelizmente, não há indícios de vontade política para acabar com a farsa.
8. Duas palavras, por fim, sobre o incontornável caso Sócrates. A seu crédito está uma prisão preventiva que até alguns dos seus críticos condenaram e a exposição permanente na praça pública do curso da investigação acusatória. A débito do ex-primeiro ministro está a inverosimilhança da justificação das largas somas de dinheiro que lhe foram parar às mãos, na sua versão ora atribuídas pela família ora emprestadas por um amigo cujo grupo económico contratava com o estado ou com empresas públicas. É, certamente, esse aspecto rocambolesco da sua história que leva o comentador Pacheco Pereira a rotulá-lo de “mentiroso contumaz”. Já a jornalista Maria Antónia Palla interroga “porquê tanto ódio a Sócrates?”. Para além de ter sido primeiro ministro, figura que, como a mulher de César, “não basta ser honesta, deve parecer honesta”, talvez o seu temperamento jactante e verbo belicista ajudem a explicar isso, mais do que uma suposta perseguição política de que se diz alvo. Seja como for, mesmo que venha a ser absolvido pelo tribunal, é hoje claro que um homem que vive(u) “à grande e à francesa”, à custa da família e/ou, ainda que por alegado empréstimo, de um amigo, não é exemplo para ninguém nem reúne condições para servir a coisa pública.
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