01/06/21
NO CORRER DOS DIAS
Marques da Silva
Petropavlovsk –
Amanhece. Sente-se o romper do dia na luminosidade que renasce sobre os
pequenos gestos da natureza. Quase em silêncio o IL96 desliza lentamente sobre
a pista. Mais uma viagem de tantas que não foram muitas, com essa expectativa,
sem ser ansiedade, que pousa sobre o corpo antes de sentir que se larga do
chão. Em frente vejo a magnitude dos gémeos, os dois vulcões que vigiam a
cidade capital, o Korialski nos seus imponentes três mil metros e o Avachinski,
com menos trezentos metros. Uma auréola de nuvens forma um anel abaixo do pico
de ambos, como um colar de Saturno. A neve ainda repousa por parte
significativa das suas encostas mais altas que o degelo vai lento. À direita e
ao fundo, Petropavlovsk desperta. Neste quase rumor das turbinas, ocorre-me
lembrar uma outra viagem, quase cinquenta antes, ao amanhecer de um dia de
Julho, num outro aeroporto a cerca de sete mil quilómetros deste. Era uma bela
manhã e o início do regresso à pátria após uma longa ausência. Uma viagem com
várias paragens, em direcção a um país que saía das sombras pesadas de uma
noite extensa, emergia numa das primaveras com maior beleza. O novo e o
desconhecido aguardavam-me. Era um renascimento, um começar do princípio. Quantos
anos passaram, quantos acontecimentos vividos, sonhos adiados, esperanças
diminuídas, quantas lutas e combates. Apesar dos dissabores, das maldades, dos
pequenos ditadores e das malfeitorias com que tentam rasgar o sonho, foi uma
vivência histórica ímpar e como escreveu e cantou Violeta Parra, gracias à la vida que me há dado tanto!
Olho de novo o vulcão e descem sobre mim as palavras de Raul Brandão, “Contemplo a casinha, as árvores – o meu
sonho – e não desejo mais nada. Isto é completo e perfeito… Mas pouco e pouco
vem-me uma saudade… É ainda quase nada, e insisto. Toma corpo e avoluma-se…”.
A Península de Kamchatka é dividida a meio em toda a sua extensão por uma
cordilheira, como uma espinha dorsal a sustentar o seu território. Do centro
para o Sul outro conjunto de montanhas vive em linha paralela à cordilheira
central. Pelo meio estende-se um vale formoso e vasto. Uma estrada estende-se
ao longo do mesmo num percurso de quinhentos quilómetros. Entre estas
montanhas, erguem-se soberbos, imensos vulcões. São cento e sessenta no total e
vinte e nove deles activos. Destes, dezanove, encontram-se classificados no
Património Mundial pela UNESCO. Com frequência procuramos alcançar lugares
cujos caminhos desconhecemos e tão pouco encontramos o seu início. Olhamos para
a geografia desta península e entre montanhas e vulcões parecem existir vales
luxuriantes, mas os primeiros desenham correntes de água que na Primavera
alcançam torrentes caudalosas e quase impossíveis de transpor para quem viaja
só. Alcançar o vale dos geiseres foi uma odisseia, uma dessas aventuras que não
se olvidam, pelo inesperado, o belo e o desconhecido. Vencer os quilómetros que
separam a cidade de Milkova do jovem vulcão Kirrpintch no sopé do qual vivem os
geiseres, num primeiro momento quase conduz ao desânimo. Mas há sempre uma
solução quando a procuramos, embora neste caso implicasse três dias de dura
caminhada. A primeira resposta, encontramo-la no final da Rua Lenine em
Milkova, a via que nos levou à travessia do Kamchatka de largo caudal e forte
corrente. A sabedoria seria daí em diante saber contornar os pântanos que o
degelo fez nascer e seguir a trajectória dos rios entre vegetação verdejante
com a pujança que a natureza primaveril lhes acrescentava e as florestas de um
verde luminoso com as encostas cobertas de árvores de diversos tamanhos, em
manchas, salteadas como em desenhos arbitrários, mas cujo conjunto tornam a
observação admirável. O espanto que nos surgiu pelo caminho, acentuou-se no
vale, ao longo do passadiço que nos levou a percorrer grande parte dos noventa
geiseres e fontes termais. O cromático da vegetação aliado aos esguichos que se
elevavam no ar provindos das bolhas de lama, criavam um ambiente sobrenatural.
O silêncio envolvente, os sussurros da água fervente, transmitem um
apaziguamento que nos deixam no limbo da perfeição e Raul Brandão volta de novo
em visita, com palavras sentidas, talvez, num momento idêntico, “No alto, o céu não pode com o peso das
estrelas e a cidade, em baixo, cheia de luzes, lembra uma maravilhosa
constelação. Estas noites húmidas de luar, junto a uma mulher amada, são das
coisas mais extraordinárias que pode haver no mundo, porque a volúpia do
exterior está de acordo com a exaltação íntima e o universo vibra dentro de nós
até à dor.” As luzes da cidade, não necessitei delas e as estrelas,
imaginei-as, o restante estava ali tudo. No regresso a Milkova nem a imensa
fadiga apagou os faróis de beleza que tinha encontrado dias atrás. Segui ainda
duzentos quilómetros para Norte ao encontro do Kliutchevskaia, o mais elegante
dos vulcões na excelência dos seus quatro mil e oitocentos metros. O olhar
encontrou-o ainda na estrada, quando me aproximava da aldeia de Kozirievsk e
num momento em que a verdejante vegetação que rodeia a via, se abriu. Após
passarmos largos dias numa irmandade com uma natureza tão pura, de uma rebeldia
refrescante, difícil se torna continuar a classificar os desabroches de
formosura que se seguem. Limitamo-nos a observar em quietude a plenitude do
Kliutchevskaia, antecipando o que seria a tentativa de subida nas suas alturas.
O pico, agreste e altivo, sem competidores. A neve escorrendo pelas ladeiras
como sobrando de um bolo. Os espaços já libertos do espesso manto de neve,
mostrando a pedra nua, castanha e preta da lava que deslizou pela última vez. A
espécie de musgo que cobre como uma capa as pequenas colinas do sopé, escondem
outro magma mais tardio. Tudo parece simples e riscando a perfeição. O cansaço
venceu-me e já não alcancei o grande desejo de chegar até à pequena cidade de
Tigil para lá do meio da península e conhecer a sensação de isolamento, não no
interior do nada, mas longe de tanta coisa que quando olhamos melhor para a
vivência que temos, percebemos que é tanta coisa que serve para tão pouco. O
avião está agora no princípio da pista e os motores rodam a velocidade maior.
Começou a deslocar-se no sentido oposto à direcção que vamos seguir. Acelerou e
tal como o IL62 de há tantos anos atrás, também este Iliushin 96 com a potência
dos seus quatro motores se eleva no ar e sobe sobre a Península de Kamchatka.
Estamos a meia altura do Korialski quando se inclina para a esquerda e nos
mostra uma última vez Petropavlovks. Rumamos a Oeste e estou a caminho de casa.
As citações que aparecem, foram retiradas do livro, “As Ilhas desconhecidas” de Raul Brandão,
Perspectivas & Realidades, Lisboa, sem data.
DA JUSTIÇA IMPERFEITA
Mário Martins
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Agora que, aos olhos da opinião
pública, as vicissitudes do processo judicial em curso contra um ex-primeiro
ministro arrastam igualmente o sistema de justiça para o banco dos réus, afigura-se
oportuna uma reflexão mais vertical sobre aquele que é um dos três poderes
clássicos do estado.
1. Sendo os humanos uma criação, na sua essência enigmática e inacessível, natural para uns, divina para outros, não têm culpa, em qualquer dos casos – mesmo quando a mitologia cristã, concebendo Deus como um ser perfeito, passa a responsabilidade da culpa para o Homem - de ser como são, irremediavelmente determinados por uma natureza portadora, ela própria, do bem e do mal. Daí a conhecida frase do célebre físico e pensador Albert Einstein: “Filosoficamente um assassino não tem culpa, mas não gostaria de tomar chá com ele”. Esta condição domina todos os aspectos da vida humana, de que o sistema de justiça não pode constituir excepção. Por isso se diz que a justiça humana é imperfeita.
2. Mas como vivemos em sociedade, é preciso regular e proteger as relações entre os seus membros com um sistema de justiça, ainda que, por natureza, defeituoso, quer quanto à concepção e acervo legal quer na sua aplicabilidade.
3. Tal sistema não é determinado pela área da justiça mas, quer em termos de leis quer em termos de meios, pela política, essa arena onde se digladiam valores e interesses contraditórios, quando não antagónicos, e onde, para lá das oportunidades avulsas que confere, a corrupção se torna ou pode tornar sistemática. Dizia Agustina, talvez rendida à realidade, que “A corrupção é um vazio dos povos que sempre há que encher para solidificar os objectivos maiores (A Monja de Lisboa)”.
4. No campo da justiça penal, e exceptuando os casos de confissão, os tribunais não condenam ou absolvem com base no apuramento da verdade (o conhecido causídico Ricardo Sá Fernandes afirmava, em 2017, ao semanário Expresso, que “Não há sítio onde se minta tanto como nos tribunais”), mas sim na prova produzida pelas partes em confronto e na convicção do(s) juiz(es), sendo que a prova e a convicção nela assente poderão coincidir ou não com a verdade. É esta potencial distância entre os factos e a sua prova que, por vezes, dita a absolvição de culpados e a condenação de inocentes.
5. Nos presumíveis casos de corrupção, a justiça não pode ser rápida, e quanto mais complexos eles forem, maiores serão a lentidão dos processos judiciais e o risco de prescrição. Quando os alegados crimes prescrevem, seja por falta de meios, por desadequação dos prazos, por incompetência da investigação, ou por má-fé, é o sistema de justiça que fica desacreditado e, com ele, o regime político.
6. O processo de investigação não pode usar todos os meios, salvo os permitidos por lei, para compor uma acusação a ser julgada pelo tribunal. Por isso, o recurso a escutas telefónicas tem que ser autorizado por um juiz, sob pena de anulação da prova, e a detenção ou a prisão preventiva, porque decretadas fora do ritual de regras de um tribunal, devem cumprir estritamente as condicionantes legais, em termos de razões e de prazos, apesar de essa obrigação não evitar a eventual discricionariedade da polícia, no caso da detenção, ou do juiz, no caso da prisão preventiva. Essa discricionariedade tanto pode estar presente no abuso da privação da liberdade como na renúncia injustificável dessa privação.
7. Tratando-se de figuras públicas, em especial se detentoras de altos cargos do estado, é natural e desejável o interesse jornalístico. No entanto, além de o tratamento jornalístico dever seguir as regras deontológicas da profissão, a sua investigação deve ser independente e paralela ao processo judicial em curso, enquanto este estiver legalmente protegido pelo segredo de justiça. Lamentavelmente, não é isso que se tem passado em Portugal nos processos judiciais de figuras mediáticas, por culpa, em primeiro lugar, do poder judicial que, na hipótese mais benigna, se mostra incapaz de guardar o segredo de justiça e de pôr fim à promiscuidade com a comunicação social. Assim sendo, competiria ao poder legislativo e aos órgãos que superintendem o sistema judicial tomar as medidas correctivas adequadas mas, infelizmente, não há indícios de vontade política para acabar com a farsa.
8. Duas palavras, por fim, sobre o incontornável caso Sócrates. A seu crédito está uma prisão preventiva que até alguns dos seus críticos condenaram e a exposição permanente na praça pública do curso da investigação acusatória. A débito do ex-primeiro ministro está a inverosimilhança da justificação das largas somas de dinheiro que lhe foram parar às mãos, na sua versão ora atribuídas pela família ora emprestadas por um amigo cujo grupo económico contratava com o estado ou com empresas públicas. É, certamente, esse aspecto rocambolesco da sua história que leva o comentador Pacheco Pereira a rotulá-lo de “mentiroso contumaz”. Já a jornalista Maria Antónia Palla interroga “porquê tanto ódio a Sócrates?”. Para além de ter sido primeiro ministro, figura que, como a mulher de César, “não basta ser honesta, deve parecer honesta”, talvez o seu temperamento jactante e verbo belicista ajudem a explicar isso, mais do que uma suposta perseguição política de que se diz alvo. Seja como for, mesmo que venha a ser absolvido pelo tribunal, é hoje claro que um homem que vive(u) “à grande e à francesa”, à custa da família e/ou, ainda que por alegado empréstimo, de um amigo, não é exemplo para ninguém nem reúne condições para servir a coisa pública.
MOVIMENTAÇÕES
WESTERNOMANIA
António Mesquita
Compreendo o que continua a seduzir nos bons westerns: é Homero.
Mas o cristianismo passou por aqui. A maldade não existia no grego. Eram as paixões dos deuses que enfureciam os homens e os entregavam a um destino inelutável.
Mas há uma fatalidade na mitologia americana que é a do espaço. A natureza cerca homem e cavalo sob a forma da distância, da fome e da sede, ou do índio hostil e incompreensível. O desfiladeiro, lugar da emboscada por excelência, transporta-nos à situação de Ulisses entre Cila e Caribdis. A aventura é exterior, longe da casa e da segurança. O cowboy, como o guerreiro, não sabe o que é o dia de amanhã. As certezas domésticas, os ritos da casa são coisas para lembrar diante do fogo. As saudades do país ou do rancho que ainda não se tem povoam os momentos de repouso e as confidências.
O sexo está ausente deste universo viril. A passagem pela alcova do saloon é uma espécie de renovação identitária, uma conferência colectiva. É um belo movimento o do cavaleiro e da sua montada. Eles formam um par cheio de sabedoria. Não era Chiron, o mestre de Aquiles, um centauro? A hesitação e a dúvida não são estados equestres. Montado, o homem sabe para onde vai, e a extensão da planície não perdoa divagações. Uma necessidade nua porque o homem não conhece o conforto. O sentimento de que o animal e a terra são as únicas riquezas. Tudo prepara o futuro leitor da Bíblia para a frugalidade e a religião. Em todo o cowboy há um camponês desesperado. Anunciar a morte dum companheiro pode ser encontrar um rancho e uma viúva bonita. Mas a Sierra Madre espreita os ladrões do ouro das suas entranhas.
O homem é um ser que depende de tudo: do seu cavalo, do fogo, da sombra da árvore, do riacho, da sorte, enfim. O western dá-nos uma figura sem história. O bandido é aquele que perdeu o sentido das coisas e segue um chefe que o arrasta para a forca. No meio desta loucura, há um homem forte que desafia as leis da sobrevivência, iludido pelo medo dos outros. O bando é uma sociedade que se enche com o seu próprio discurso, e se alia a uma natureza aparentemente cúmplice. A caverna dos ladrões de gado só tem pensamentos de insegurança. O próprio do fora-da-lei é deixar-se apanhar pela imaginação, antes dum adversário tranquilo e civilizado pelas mulheres lhe deitar a mão.
O duelo final entre o herói e o vilão deve deixar bem claro de que lado estão os deuses. À diferença da tragédia e dos poemas homéricos, o western é moralista. O lado do bem triunfa sempre. Mas não sem que se ofereça ao espectador um comentário pragmático: o herói usava uma pistola de oiro ou era melhor atirador. Não importa. O nosso mundo tão cheio de defesas e de artifício é um anti-western.
Temos quase a sensação de que o homem pode viver sem paixões, com uma ou outra fuga de pressão. Perante o filme de cowboys, descobrimos uma idade de ouro que é também a infância de cada um. Tudo se começa a dividir pelos nomes que em criança se pôs às coisas e às pessoas. Os bons e os maus são a primeira lição de moral. E o adulto, quantas vezes não tem de regressar no tempo para compreender?
Então por que é que se deixaram de fazer westerns? Só talvez a aventura espacial conserve alguns elementos do género, mas com a tecnologia omnipresente, como outra natureza, às vezes, hostil, como no filme de Kubrick.
As modas não explicam tudo. Desde os tempos do cinema mudo que o filme de cowboys marcou a sua presença e sempre teve os seus admiradores, entre os quais, inesperadamente, o próprio Iosif Vissarionovich Dzhugashvili, mais conhecido por Staline, segundo nos conta a filha, Svetlana.
A decadência do género era já evidente nos filmes de Sérgio Leone e o seu "western-spaguetti". A grande mudança verificada na cultura americana por força da massificação dos media acabou por desenraizar a ligação tradicional com o território que era a essência do pioneirismo.
Hoje parece que são os novos imigrantes asiáticos, segundo o testemunho cinematográfico de, por exemplo, Lee Chung, com o seu admirável "Minari", que carreiam esse pioneirismo anacrónico, temos de o dizer, em tempo de internet e das redes 5G.