Mário Martins
Há o que chamamos espírito do
tempo, que forma o padrão dominante da mentalidade e da psicologia colectivas. Depois
da tragédia da 2ª. guerra mundial, o espírito, alimentado pela aceleração da
evolução científico-técnica e, em especial, pela computação, era o de progresso
contínuo, aparentemente imune a novas grandes tragédias, muito menos mundiais. Ao
horror da guerra sucederia inevitavelmente um futuro radiante de paz.
Na realidade, à guerra global seguiram-se
guerras locais, estúpidas e horrendas como aquela, mas de menor escala, até
que, subitamente, no início dos anos oitenta, o progresso contínuo, desmentido
pela reedição dessa antiquíssima tradição humana de guerrear, parou de forma
dramaticamente inesperada, com a entrada em cena do vírus da sida, que não só
afectou e ainda afecta a vida sexual e social das pessoas por esse mundo fora,
como matou, segundo dados da OMS, cerca de 33 milhões (até agora, a Covid matou
cerca de 3 milhões), e para o qual não foi ainda criada uma vacina eficaz mas
“apenas” fármacos que tornaram a sida uma doença quase crónica. Desgraça que um
negacionista, sempre predisposto para qualificar a tragédia como farsa e
confundir factos com opiniões, autoproclamado
“amigo da verdade”, mas que o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa
define como “aquele que nega ou não reconhece como verdadeiro um facto ou um
conceito que pode ser verificado empiricamente”, consideraria obviamente
imputável a uma conspiração dos fabricantes de preservativos.
Mais recentemente, em plena crise
Covid, um negacionista português, juiz da nossa praça, que, muito naturalmente,
imputa a pandemia a uma conspiração da indústria das vacinas, interrompeu uma
sessão do tribunal por o magistrado do Ministério Público se ter recusado a
tirar a máscara, e mais do que isso, numa atitude deveras surpreendente mas,
sem dúvida, romântica à maneira do que ainda se praticava em Portugal nos
princípios do século XX, desafiou o director nacional da Polícia, que havia
apresentado queixa dele, para um duelo, não às mais tradicionais espada ou
pistola, mas à MMA, sigla inglesa que significa artes marciais mistas. Quem
presidiria ao duelo? Não poderia ser ninguém da maçonaria à qual o juiz acusa o
director da Polícia de pertencer. Mas, salvo confissão pessoal, como ter a
certeza disso se os membros das organizações desse tipo estão a coberto do
manto de segredo? Ricardo Araújo Pereira já apostou 100 euros na vitória do
polícia. Talvez menospreze um juiz cujo perfil afinal se coadune melhor com a função
de agente de segurança.
Para aplacar um pouco os ímpetos
bélicos do nostálgico juiz recomendaria, em tempo de Páscoa e Primavera, a
audição das Paixões de S. Mateus e de S. João, de Johann Sebastian Bach.
O famoso compositor estava, indubitavelmente, em estado de graça quando
escreveu a de S. Mateus, mas a abertura da paixão sanjoanina é simplesmente
arrepiante, qualquer coisa do “outro mundo”. Preferindo uma obra não tão
marcadamente religiosa, sugeriria a Sagração da Primavera, bailado em dois
actos, de Igor Stravinsky. Tratando-se de obras-primas, obviamente
cristãs, as de Bach, ou de índole pagã, a de Stravinsky, elas tanto
podem ser apreciadas por crentes como por não crentes, quer pelo seu alto valor
artístico, quer por representarem, a seu modo, o mistério da existência e a
angústia da condição humana. Aqui, o espírito é o de um tempo mais perene.
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