Marques da Silva
Petropavlovsk – A primeira imagem
que nos enche o olhar no interior da baía de Avacha é o cone branco do vulcão
Koriakski, brilhando na serenidade da manhã como se furasse um céu azul cheio
de luz, algo tão raro na Primavera destes espaços do longínquo oriente. A baía
é um círculo quase perfeito de dez quilómetros de diâmetro, abrigando a cidade
das intempéries do oceano. Desembarco sem pressa, com essa tranquilidade de
quem chega para ficar, sem receio que o tempo engula a ansiedade que sempre
gera o contacto com o desconhecido. Subo da cidade portuária para a cidade
nova. Passos vagarosos, para gerir o cansaço de uma inclinação de 8%
desgastante. Há momentos em que detenho a caminhada numa mistura de descanso e
de contemplação da baía por onde entrou o navio que me trouxe. Deixamos Vanino
há três dias, o tempo que demorou a navegar as mais de mil milhas que separam
as duas cidades. O navio virou a proa para norte, através do estreito da
Tartária onde em certos sítios a Sibéria aparece separada da Sacalina por
escassos oito quilómetros. Tchékhov conta, no livro em que relata a sua visita,
que no Inverno o mar congela e que muitos dos presos da ilha aproveitavam para
fugir atravessando o estreito a pé, sendo que essa tentativa libertária, se
tornava a maior parte das vezes num fracasso, pelo cansaço, pela inclemência
das condições meteorológicas e também porque eram apanhados e remetidos de novo
para a prisão. Alguns morriam engolidos pelo frio e pela neve. Contornada a
Ilha pelo Norte o navio virou a proa para Sudeste para a longa travessia do Mar
de Okhotsk. O vento roçava a estrutura com total impunidade, como senhor
absoluto daqueles espaços. Na segunda noite pacificou, agasalhou-se no
aconchego polar e permitiu uma noite de uma placidez absoluta. No convés, foi
possível a contemplação daquele céu quase árctico. A nossa galáxia aparecia
desenhada num rendilhado irrepreensível, simétrico, fisicamente equilibrado por
forças invisíveis. Todos os sonhos são possíveis em noites como essa. Sentimos
esse prazer do Belo e o desejo que o tempo estanque a sua marcha e nos deixe
nesse gáudio de satisfação. Enquanto o olhar se deleitava com a magnitude do
espaço celestial a memória viajava até às palavras de Raul Brandão na sua
visita açoriana. “Abstracção e sonho. Porque neste amanhecer perpétuo a gente
sonha mais do que vê. Divaga. Pouco e pouco a paisagem fica azulada – dum azul
desmaiado, dum azul com água. Divaga toda azul num mundo de sombras brancas, de
hálitos tépidos, de penas que esvoaçam. É alguma coisa de perfeito, de incriado
e sereno…”. O escritor portuense visitou as ilhas trinta anos após o relato de
Tchékhov sobre a Sacalina. Ambos foram para conhecer e sentir o pulsar da vida
humana. Na grandeza da ilha russa os seres humanos eram na sua imensa maioria,
prisioneiros, enquanto nas ilhas atlânticas, viviam em liberdade, mas a palavra
de ambos os escritores, estremeceu da mesma forma perante o drama humano que
encontraram. A vivência corvina deixou o escritor português nessa linha da
impotência e do estupor perante a rudeza primitiva com que se deparou. Enquanto
os olhos perdidos na noite vão contando as estrelas no estendal da via láctea,
recordo que as comemorações de Abril me alcançam pela segunda vez distante do
solo pátrio e a distância faz acorrer com mais facilidade à fonte das lembranças
aquelas lágrimas que não choramos. Constroem agora a narrativa que a Liberdade,
a Democracia e Abril não têm dono. Mas têm. São propriedade dos que, de algum
modo, lutaram para que fossem possíveis e não dos que se opunham, uns pela
violência, outros pela omissão. Hoje e no futuro, são e serão dos que as
defendem e não dos que as pretendem destruir, enquanto valores, princípios e
objectivos. Percorro agora a avenida Karl Marx, por entre bairros soviéticos. Espaços
largos e amplos como a inexistência de especulação da terra permitiam à época. Alcancei
a parte alta da cidade e uma extensa recta desenha-se à minha frente. Os
bairros continuam marginais à avenida que entretanto, estabilizou e chama-se a
partir daqui, 50 anos de Outubro, o mês da revolução, outra que não a da nossa
Primavera, e outros 50 anos passaram sobre os primeiros e o sonho derramou-se
no degelo de um ano sem nome. Ocorrem-me de novo as palavras de Raul Brandão,
“Ora na vida o essencial não é o pão, é outra coisa sem a qual mais nos valia
morrer. O essencial é o sonho que transforma o homem”, e quando o sonho se esvaiu
entre a demagogia e a ganância, esvaiu-se o pão. Vê-se e sente-se no interior,
por vezes, afastado das cidades russas. Não são barracas, antes casas de
madeira, umas melhores, outras nem tanto. Não é apenas o desgaste do tempo, ou
da chuva e do vento, mas da incapacidade económica, revelando exteriormente o
frio que as percorre por dentro. A fadiga começa a fragilizar esta caminhada,
pelo que vou acolher o corpo a um tempo de repouso. Por sobre novos blocos
residenciais o Koriakski e o Avachinski espreitam sedutores com os seus mais de
três mil metros. São eles que procuro neste caminho, mas para mais tarde que
hoje sinto o estremecer das alturas nos membros inferiores. Fraquezas humanas
incontornáveis.
As citações que aparecem, foram retiradas do livro, “As Ilhas desconhecidas” de Raul Brandão, Perspectivas & Realidades, Lisboa, sem data.
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