António Mesquita
Para escrever, hoje, não precisamos de uma biblioteca, como o Jesus de Pessoa já não precisava. Tudo está ao alcance de um clique. E em vez de percorrer as estantes pela ordem das matérias e dos títulos, digitar a palavra-furão.
Jules Renard (1864-1910) |
Depois de tantos séculos posso afirmar/ que a escrita é uma escravidão dura."
(Fiama Hasse Pais Brandão: "Área Branca")
Para escrever, hoje, não precisamos de uma biblioteca, como o Jesus de Pessoa já não precisava. Tudo está ao alcance de um clique. E em vez de percorrer as estantes pela ordem das matérias e dos títulos, digitar a palavra-furão.
Já houve quem definisse a verdadeira cultura do indivíduo pela sua capacidade de encontrar a citação que lhe falta no acervo de volumes da sua biblioteca. Pressupunha, é claro, que ele os tivesse lido primeiro para retirar, num gesto expedito, o livro certo.
Em contrapartida, ao moderno utilizador do Google ou da Wikipedia, bastará, em vez daquela leitura, a explicação que acompanha a expressão ou a frase em questão. É como se em vez de conhecer pessoas para pensar ou dizer algo sobre elas, o seu carácter, a sua história, nos ficássemos por uma informação de segunda mão.
É verdade que o novo método de "aprendermos" não é uma escolha. É uma cultura de que já não nos podemos diferenciar. A complexidade crescente da informação e do universo escrito, mais cedo ou mais tarde, haveria de nos confrontar com a necessidade de recorrermos à inteligência artificial.
Fiama diz que o trabalho da escrita é duro, uma escravidão. Pensará não na dificuldade de tomar em conta tudo o que a rodeia e, por exemplo, o que os outros escreveram, mas no problema da forma, que em poesia é mais crucial ainda do que nas outras áreas da literatura. Nem de propósito, tenho diante de mim o "Journal" de Jules Renard (1864-1910), em que ele conta, no seu estilo inimitável:
"Quando os nossos confrades não estão presentes, e que lemos Musset, sentimo-nos imediatamente emocionados. Na verdade, se olharmos de perto, estes versos parecem mal feitos, e longe da perfeição moderna. É, portanto, qualquer coisa de muito prejudicial, a forma."
Renard assume aqui que o poema de Musset era mais verdadeiro ou mais belo, antes de ser torturado pela regra formal que era consenso na sua época.
Ora, a facilidade maravilhosa com que encontramos o que queremos na internet sujeita-nos à regra do universal, já que havemos de prescindir da experiência pessoal de ler o livro cujo contexto foi formatado e simplificado pelo motor de busca.
Com isto, não estou a dizer, no caso, que o trabalho da poesia possa sempre ser "espontâneo" e rebelde à forma consagrada, e por isso, menos torturado. Aliás é porque existe a lei da forma que alguma poesia pode ser dita "livre".
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