A casa rural do Baixo Minho (1750-1810) scielo.br
Perguntado, a indicação do taxista tinha sido muito precisa. Numa curva apertada para a direita tem uma abertura em frente, parece um portão que vai dar a uma eira. Assim era e ao chegar percebeu, ou pareceu-lhe que o carro não entrava pelo que estacionou nas redondezas. Ao passar pela entrada, compreendeu que era um caminho de terra batida que conduzia a um conjunto de habitações erguidas no interior de uma quinta que já não era.
Perguntou pelo Ferreira a uma anciã que se movia já com os vagares de quem tem pouco caminho para andar e não tem pressa. «Vê aquelas laranjas a brilhar?». Via perfeitamente e seguiu. Há nomes que não podem enganar, nasceram com os lugares e acabam a dar-lhes memória. Aquela Rua Subpenedo não deixava muita margem para dúvidas, ou dito de outra forma, o penedo que se erguia por cima da que fora uma quinta de lavoura não deixava dúvida sobre a origem do nome da rua. As primeiras casas estavam escuras, não da cor, mas do frio, da humidade e da pobreza que se sentia. Talvez não chegasse à miséria, mas era carência em índices elevados. Não era apenas aquela sombra que o Inverno não deixa aquecer, sentia-se no ambiente, no peso da paisagem, na alma das pessoas. O caminho volteava e em breve alcançava o sol. Ali estava num quadro de transição entre o Douro Litoral e o Minho, entre um território mais povoado e outro que esconde as casas no interior de vegetação que o aproximar da primavera torna viçosa. Mas as pedras, aquele granito acinzentado, não aquece em nenhum dos lados. Arrefece, gela o corpo e o ânimo dos Homens. Só as lareiras interiores penetram nas raízes e confortam a rigidez do frio nocturno. Ao amanhecer, arrefecidas as achas que não chegaram a queimar-se, é difícil ignorar os cinco graus que caíam do ar que envolvia a terra. Onde o dinheiro escasseia para o alimento, a lareira dificilmente aquece. Ao dobrar do caminho, viu a eira, mas tudo parecia fechado. À direita, no cimo das escadas, de pedra naturalmente, viu o 188 e a esperança de encontrar alguém, derreteu-se com mais rapidez do que aquela com que o sol afastava o frio ali onde batia com toda a grandeza com que o apreciamos. Apesar da luz que aquecia toda a eira, o que os seus olhos viam era um ambiente, limpo, mas de abandono. O que o desanimou, foi ver a porta e as janelas fechadas e por trás destas, sem cortinas nos vidros, as portadas também encerradas. Ou dormiam ainda o que não parecia possível ou não estavam. A vida, ensinou-lhe a não desanimar à primeira e subiu os quase dez degraus, batendo sem muita força aos vidros. Como a esperança de que o atendessem não era muita, olhou para a montanha em frente. Sem ser elevada era a barreira que separava as províncias. Teve sempre a alma dividida entre o Douro e o Minho e acabava por se sentir bem em ambos os territórios, mas não escondia que a norte do Ave, sim esse Ave sujo, imundo que corria parado um pouco abaixo, era uma atracção que não resistia. Passados alguns segundos e para consolo seu, a portada começou a abrir-se. Olhou e fixou o homem. «Sr. Ferreira?», disse, não acreditando que a resposta fosse sim. «Sou eu». Demorou um pouco a reagir. Procurou olhar para si próprio no reflexo dos vidros e prometeu que não voltava a dizer que estava a envelhecer. Aquele homem de cinquenta anos, aparentava muito mais de setenta. A velhice não se encontra com a idade, mas com o peso da vida e da miséria, do trabalho e da escassez. Matam-nos o corpo, muito antes de nos esgotarem a alma. Entrou em silêncio recuperando fôlego e preparando-se para o que ia ouvir, já tantas vezes escutado e que não deixava de o surpreender sempre. Sentaram-se ambos num sofá também ele gasto pelo tempo e pelo uso, pois quem nada tem, passa demasiado tempo sentado. O espaço era limpo e ordenado, mas sentia-se um vazio imenso em redor. A televisão parecia recuperada da série televisiva “Conta-me como foi” e as paredes, brancas e limpas, viam a tinta cair aos poucos sem que alguém tivesse forças para a segurar ou repor. Os quadros, eram de fotografias antigas, gastas por um tempo que a memória já não retinha. Tudo o resto era pouco que os 440,00 euros mensais não podiam alimentar muito. «Desculpe que a minha mãe não está, pois foi à feira». Teria ido, certamente nos seus mais de setenta anos, daí a sala de entrada ainda ter ordem, que já não era totalmente extensiva à sala interior. Abriu-se um alçapão que parecia conduzir ao fundo de um tempo que não se queria ainda existir e a cave em terra batida com enormes lombas, guardava ou escondia coisas sem nexo em frias e escuras sombras. Restava apenas o sol que entrava pelos vidros. Voltaram a subir e despediram-se. Desceu as escadas e enfrentou de novo a luz do sol que teimava em querer aquecer as pedras. Tentou que o olhar contornasse a luminosidade. Do outro lado do rio, uma linha desenhava a N105 e entre duas casas o Alfa deslizava para Oeste. Caminhou mais devagar do que à chegada, gerindo a mágoa que lhe destroçava a alma e lhe fazia crescer uma raiva infindável. Olhou com mais atenção a vegetação nas margens do caminho. Mato queimado e silvas murchas, davam um ar de desamparo. Ao chegar ao carro, corria o noticiário. Falava um ministro ou um político, não se recorda, um desses que vivem de consciência tranquila. Falava de assuntos importantes para o país. Não chegou a saber o país do político, mas não era o seu, de certeza, nem o de milhares de Ferreiras que vivem escondidos no interior de quintas com nomes de rua.
Sem comentários:
Enviar um comentário