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01/07/20

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva

Pablo Neruda (1904/1973)



Desde aquele extraordinário dia em que do fundo do nada, surgiu o senhor das trevas e das sombras, na loucura de um tempo desordenado, de um planeta caótico, afogado na perversidade maldosa de poderes de aparência democrática, sufragados por votações de gente desorientada que procura no discurso fácil, a fuga a tanta desumanidade e, o nosso mundo, pleno de rotinas, lugares conhecidos, amigos sempre nos espaços necessários, uma vivência que sonhava eternidade mas se contentava com dias quase perfeitos, desabou para o interior das casas, de nós próprios e encerrou tudo o mais em redor. Foi o tempo das ruas vazias, dos grandes silêncios, da serenidade de cada amanhecer, dos temores, dos gritos que se escutavam nas madrugadas sem nome, em que cada um fugia do outro e de si próprio. Apagaram-se as luzes do tempo e os túneis passaram a lugares de abrigo. Como demorou o dia em que ansiosos, espreitámos pela janela, escondidos por cortinas espessas, procurando com o olhar tudo o que antes conhecíamos e parecia que o pretérito se tinha evaporado. Em que estado físico estaria agora a vida que sempre havíamos conhecido, as aldeias e vilas por onde tínhamos passado, as casas com flores nas janelas, os gladíolos, os crisântemos as cores das buganvílias. Que mundo era este que se apresentava ao nosso olhar, era novo ou diferente? Como sabê-lo sem sair à rua. Foi então que nos aventuramos, espreitando antes pela porta semi-aberta, olhando para um e outro lado, recomeçamos a caminhar como as crianças, devagarinho, a medo, espreitando para o perto e para além, tentando descobrir o desconhecido, procurando as pessoas, mas sem que nos aproximássemos, falando à distância, escondendo o rosto e temendo em cada passo que dávamos. É desta forma que estamos reinventando a vida, entre a estupefacção e o receio. Tentamos recuperar lentamente deste quase marasmo de três meses, mas há um temor instalado, um desconfiar daquele que se aproxima, se dirige para nós e que travamos à distância, com a mão ou a paragem súbita. Onde se encontra o pequeno diabo, quem o esconde, quem o faz viajar? Vivemos agora entre o grande pavor de alguns e a leviandade de outros, num equilíbrio precário, instável, quase irreparável. Olhamos atónitos o espaço próximo, procurando adequar-nos ao incógnito, com lugares alterados e sem a beleza de outrora. Abdicamos de festas ancestrais, de viagens e quase renunciamos ao belo. Seguíamos alegremente num comboio a grande velocidade quando embateu contra uma parede de betão, soltando milhares de estilhaços que agora tentamos apanhar. Os meus olhos procuram-te nesta solidão que nos cerca, acreditando que sobreviveste a esta insânia do comportamento humano e vejo que o que tanto pedi que não me privasses, desapareceu, foi remetido para a escuridão de um pano que cobre os rostos e nos deixa no limiar da anonimidade. Socorri-me, naquele tempo errante, das palavras excelsas do poeta para te suplicar, “Tira-me o pão se quiseres/tira-me o ar, mas/não me tires o teu sorriso”. Contudo, a violência invisível que tombou sobre nós, sobre o nosso pensamento, os nossos valores que queríamos eternos e inexpugnáveis, levou-me esse momento de ti que tanto prezava, tento adivinhá-lo nessa sombria parede atrás da qual se esconde, mas sinto que a imaginação não consegue penetrar na visão verdadeira e luminosa desse teu sorriso. Ainda tento de novo o poeta, na expectativa de vencer o medo que faz esconder esse pedaço de ti de tanta beleza, “nega-me o pão, o ar,/a luz, a primavera,/mas o teu sorriso nunca/porque sem ele morreria”. Desfaleço na angústia dessa perda e num momento de esperança, tento que a alma se agarre ao que ainda resta e é inesquecível, o teu olhar, sereno, carinhoso, de água pura. Não quero pedir-te nada, sei até que não o mereço e não seria justo, mas hoje pretendo abrir uma excepção. Quero pedir-te que uma vez por dia, possas sair dessa penumbra onde se oculta agora o teu sorriso e abras os teus olhos para mim. A humanidade diz que existem sete maravilhas no mundo e se o diz deve estar certo, pois pouco sei das coisas da vida e a humanidade sempre soube mais do que eu. Para mim, só existem duas maravilhas no mundo, uma, o temor levou-a para a retaguarda do que é visível, a outra, são esses dois pontos que desenharam com a maior das perfeições no teu rosto. Caso seja verdade que existem mesmo sete maravilhas no mundo, então a primeira e a mais bela de todas são os teus olhos. Por isso, hoje abro uma excepção e venho pedir que uma vez por dia os abras só para mim, pois é através deles que consigo contemplar o universo, ver as galáxias distantes, contar as estrelas brilhantes, desenhar equações matemáticas, até adivinhar os planetas e com fórmulas físicas ler as cores dos quasares longínquos que fazem esvoaçar melodias divinas pelo firmamento. Nas longas noites de sossego é ainda através dos teus olhos que consigo espantar-me com a pureza alva da lua que espalha um sorriso de alegria por todo o céu nocturno. Para que as noites não sejam só escuridão e silêncio a perfumar a solidão e para que possa espreitar o universo, hoje, excepcionalmente, atrevo-me a pedir-te que uma vez por dia, abras os teus olhos só para mim.


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