António Mesquita
Werner Herzog inspirou-se, para "Family Romance LLC", numa situação de facto. Existe, em Tóquio uma empresa comercial (de responsabilidade limitada - é o que quer dizer LLC) que vende um estranho serviço: propõe-se alugar verdadeiros actores para substituir, nas mais diversas funções familiares, os membros de qualquer família, ausentes ou desaparecidos. Mas os agentes da "Family Romance" podem também assumir outros papéis, como é o caso do funcionário do TGV responsável por um diminuto atraso de um dos combóios, mas com graves consequências "em cascata". Em vez dele, quem recebe a reprimenda do seu superior e tem, perante ele de se humilhar, com dignidade, como só os japoneses sabem fazê-lo, é Ichii Yuchiio, o proprietário na vida real da "Family Romance" que Herzog teve a sorte de conseguir para a figura principal do seu elenco (esta disponibilidade explicar-se-á pelo motivo da publicidade ou como demonstração da total boa-fé do empresário?).
A verdade é que há uma "entrega" total de Ichii ao papel de pai substituto da criança que perdeu o progenitor demasiado cedo para se lembrar dele e cuja mãe supera todas as reticências contra essa representação, ou mentira, segundo os padrões convencionais, em favor do que considera uma educação "equilibrada", de pai e mãe, para a sua filha.
O regresso de Ichii à sua própria família, no final do filme, parece um momento de crise. Ichii senta-se nos degraus, antes de abrir a porta, escondendo o rosto entre as mãos. Podemos ver, através da vidraça, as mãos de uma criança da mesma idade da filha da sua cliente, perante a qual derrama toda a afectividade de que é capaz, mediante uma espórtula. O que se vai seguir é ainda ficção? Como é sentir-se "mais pai" com a própria filha? Ichii parece exausto de representar. E está a perder a noção de fronteira entre a vida e o teatro ou o jogo. Como esta temática nos surge mais actual ainda, com o mundo virtual, as "fake news" e a "distância social" !
Esta subrogação, este serviço, por outro lado, nas condições de um contrato e de uma transparência absoluta, está muito mais próximo da purga das paixões (que era a verdade de certa tradição teatral) e da ritualidade do que da moral, tal como a entendemos no mundo ocidental.
Esta subrogação, este serviço, por outro lado, nas condições de um contrato e de uma transparência absoluta, está muito mais próximo da purga das paixões (que era a verdade de certa tradição teatral) e da ritualidade do que da moral, tal como a entendemos no mundo ocidental.
Em defesa da autenticidade do seu papel, o empresário-actor alega os limites de uma "substituição". Por exemplo, o seu camaleonismo não poderia ir ao ponto de imitar os tiques de alguém, porque isso soaria a falso... Também o vemos a simular a rigidez da morte de outro cliente, num funeral cerimonialmente encenado, para resolver a dependência afectiva dos "sobreviventes".
O prólogo do romance de Julian Barnes, "Nada a Temer", o irmão do protagonista faz notar que este interpretou mal a frase, em Montaigne, "Philosopher c'est apprendre à mourir". O que a citação de Cícero queria dizer "não é que pensar regularmente na morte nos faz receá-la menos, mas sim que o filósofo, quando filosofa, se treina para a morte - no sentido em que gasta tempo com o espírito e ignora o corpo que a morte extinguirá."
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