StatCounter

View My Stats

01/03/20

O ESPECTRO DE MARX

Mário Martins

https://www.fnac.pt/Karl-Marx-Isaiah-Berlin


“Nenhum pensador do século XIX teve uma influência tão directa, deliberada e poderosa na humanidade como Karl Marx.”
Isaiah Berlin “Karl Marx”, 1939


O túmulo londrino de Karl Marx foi vandalizado duas vezes nas últimas duas semanas. Na mais recente foram escritas expressões como “Doutrina de Ódio” e “Arquiteto do Genocídio” a vermelho, danificando a sepultura do inquilino mais famoso do cemitério de Highgate.”
Da imprensa, 2019

A primeira precaução para interpretar ou criticar Marx é distingui-lo do marxismo, até porque ele próprio, sabendo que a uma teoria nova amplamente aceite sucede a vulgata ou a escolástica, não se reconhecia marxista. 

O núcleo da sua teoria da história está condensado na célebre e sedutora passagem do Prefácio da sua Contribuição para a Crítica da Economia Política, publicada em 1859: 
Na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas, necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto destas relações de produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estádio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social”. Donde, conclui Marx, com Engels, no Manifesto do Partido Comunista, “a história de toda a sociedade até agora existente é a história da luta de classes”.

Armado da sua teoria Marx só poderia ver a religião, que rotulou de “ópio do povo”, como um mero instrumento de dominação da classe capitalista, não reconhecendo que a sua essência não deriva das relações de produção mas do sofrimento, da morte, da tradição familiar e comunitária, da ligação aos antepassados, do mistério da natureza. É assaz duvidoso, por isso, que na sociedade sem exploração determinada pela teoria de Marx, os crentes abdicassem da mitologia religiosa, enquanto ponto de fuga de uma realidade natural imperfeita e amoral para imaginários paraísos celestes.

No entanto, nos termos da sua própria teoria, a luta de classes não é mais do que a expressão ou consequência do conflito entre as forças produtivas e as relações de produção, e estas, “necessárias e independentes da vontade humana”, do grau de desenvolvimento daquelas; pelo que a principal força motora da sociedade não será a luta de classes mas sim o desenvolvimento das forças produtivas, ou seja, simplificando, aquilo a que hoje chamamos inovação tecnológica.

Na sua visão determinista da história, “mesmo que uma sociedade tenha traçado as leis naturais que regem o seu movimento, não pode saltar por cima ou decretar a abolição das suas fases naturais de desenvolvimento”, apenas pode “abreviar ou mitigar as suas dores de parto”. “O país industrialmente mais desenvolvido não faz mais do que mostrar ao menos desenvolvido um retrato do seu futuro”. No quadro desta visão poderá, assim, dizer-se que as revoluções socialistas do século passado (que ao invés da predição da sua teoria, ocorreram em países economicamente atrasados) queimaram etapas e que Marx não poderá ser responsabilizado por isso. 

De todo o modo, há um aspecto essencial que Marx negligenciou, que é a corrupção do poder. Ao inspirar e participar na criação de uma vanguarda revolucionária e advogar o exercício pelo estado da ditadura do proletariado, instrumentos que Lenine, Estaline e Mao, umas décadas mais tarde, haveriam de refinar e usar, Marx menosprezou, contra toda a experiência, a característica humana de gosto pelo poder, praticado a todos os níveis da vida social, seja na política, no trabalho, ou no recato do lar. Como Bakunine previu, em polémica azeda com Marx, ou Rosa Luxemburgo ao tempo da revolução russa, a ditadura do proletariado haveria de tornar-se numa ditadura sobre todas as classes sociais. Ofuscado tanto pelo convencimento de que tinha descoberto a lei do devir histórico, como pela noção do seu génio assente em aturados estudos (reconhecido quer por opositores do seu tempo quer por biógrafos não marxistas), igualmente intolerante com adversários burgueses e revolucionários que não seguiam as suas ideias, Marx não podia servir-se da prudência que o senso comum recomendaria e que o historiador e político britânico, seu contemporâneo, John Dalberg-Acton, sintetizou na famosa frase de que “o poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Toda a experiência depois de Marx atesta que a pessoa e as sociedades humanas são demasiado complexas para caberem, por inteiro, numa teoria da evolução da história, ao mesmo tempo que ilustra o paradoxo de a influência espectacular das suas ideias no século passado, ter escapado, por assim dizer, ao alcance da sua tese de que é o modo de produção material que determina a consciência dos homens. O próprio Marx, de resto, que viveu praticamente metade da sua vida numa Inglaterra industrialmente avançada mas onde a luta de classes não atingiu o grau previsto, vacilou quanto à inevitabilidade da revolução proletária; em carta a Hyndman, fundador da Federação Social Democrata Inglesa, escreve Marx em 1880: “Se diz que não partilha as opiniões do meu partido sobre Inglaterra posso apenas replicar que o partido não considera necessária uma revolução inglesa mas – de acordo com os precedentes históricos – possível”. 

Oriundo de uma família prussiana pequeno-burguesa, a sua total dedicação ao estudo e à causa revolucionária acarretou a Marx, bem como à sua mulher e filhos, uma vida de constante penúria, apenas minorada aqui e ali por parcos rendimentos de artigos jornalísticos e pelas dádivas de amigos, principalmente de Engels. Daí a amarga ironia da sua conhecida frase: "Não creio que alguma vez alguém tenha escrito sobre o "dinheiro" com tanta falta dele. A maior parte dos autores que o trataram estavam profundamente em paz com o assunto das suas pesquisas."...


Sem comentários:

View My Stats