António Mesquita
O anedotário sobre a vida dum artista como Tolstoi nunca é isento de preconceito. Desempenha a função duma física do génio, mas que à partida se encontra eivada de arbitrário. Não é, de facto, possível acreditar neste quotidiano marcado pela incoerência e a fragmentação do tempo. “Guerra e Paz” permanece inexplicável, apesar da experiência da corte e da vida militar. O autor estuda o terreno em Borodino, e essa precaução na biografia tem o ar duma cerimónia esotérica, apesar de insinuar o espírito de observação e de rigor. O que é insuficiente dum modo absoluto para explicar a obra não deixa de alimentar a nossa fome de pormenores. Não podemos atribuir a maravilha a Deus directamente, por isso buscamos na natureza incompleta da biografia uma participação narcísica.
O Tolstoi inacessível torna-se um processo de identificação a partir da anedota. Percorro a cronologia da sua vida para chegar a uma síntese toda pessoal, e talvez seja um dos maiores motivos de sucesso da “objectividade” biográfica. O modelo do género é Suetónio que, sob a aparência da distância histórica, vai à frente da imaginação do leitor para zelar por que umas coisas fiquem na sombra e outras ocupem toda a luz.
A hagiografia é o anti-Suetónio. A sua função é educar autoritariamente. Enquanto que a admiração não força. As peripécias são, por esse sentimento tão propício à elevação do espírito, quando se dirige aos grandes vultos da humanidade, transfiguradas pela lei da profecia. Tolstoi aos 25 anos atravessa uma tempestade de neve durante toda a noite. Pensa descrevê-la. Mas eu não posso deixar de ver aí uma experiência metafísica da natureza. Quem como LNT soube dar-nos o sentimento do espaço e da grandiosidade do céu? A sua vida é uma série de vidas. O velho levanta-se e recomeça a viver com forças renovadas. Mudar de vida aos oitenta anos, que exemplo de liberdade e de inocência viril! As personagens mais profundas e com maior interesse humano, como André Bolkonsky, Pierre ou Levin suscitam na leitura biográfica apreensões fulgurantes sobre a personalidade de Leão Tolstoi. Quanto mais se admira a obra, mais necessária se faz a mediação biográfica. Os autores sem história, como Homero, participam imediatamente do mito. Transcendem a síntese psicológica. Mas os romances de Tolstoi pedem uma leitura da vida. O método hermenêutico pela reconstituição da experiência vivida modifica a personalidade do medium, coloca-o numa órbita superior. Prazer histriónico também. A obra pela biografia traduz-se em comportamento e em moral. A vida deste génio sem medida é além disso a história duma inquietação metafísica e dum movimento perpétuo para a perfeição. Não surpreende que tenha sido o profeta da Revolução, ele que detestava as ideias modernas e o criticismo filosófico. É que no Evangelho Tolstoi via mais do que um texto antigo e venerável. Um homem que escreveu como ele, divinamente, não podia ter uma vida sem inspiração.
Raramente a obra é dum modo tão verdadeiro o espelho do homem.
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