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01/11/18

NO CORRER DOS DIAS

Marques da Silva



Quando ainda os nossos passos não se haviam encontrado para caminharem afastados mas lado a lado, acreditava que o mundo era composto de silêncio e que a ausência de sons era o complemento necessário à existência da beleza, ao irradiar da perfeição que procurávamos nas formas dos objectos e das paisagens. Foi o sorriso do teu olhar que me mostrou que o planeta onde habitamos está organizado em ritmos, em melodias e que só quando sabemos viver amando, as podemos detectar por sobre o rumor do silêncio. Mas tudo isto foi muito mais tarde. Naquela época apenas sabia que “ao princípio é nada, um sopro apenas” e assim se coloca uma primeira pedra no que desejamos construir, nas amizades carregadas do belo, dessas que ansiamos viver, e a harmonia aparece quando aprendemos a conhecer a música que nos rodeia e somos capazes de compreender os murmúrios melodiosos que sobrevoam os planaltos, a canção que se desenha nos rios que descem das montanhas ou a sensação de alienação que nos alcança nos picos elevados da vida. “Como ao vento, As searas da terra, E as crinas dos cavalos, Entre dois infinitos de azul”. Rasgamos tudo o que sabíamos e aprendemos a escutar e a amar com um simples olhar, não apenas a natureza mas, sobretudo, os rostos humanos e em especial aqueles que de nós se aproximam para ficarem entre o mar e o céu no horizonte onde se tocam os azuis. “No leito de negras rochas, Que na costa se adorna, De mil vidas fervilhantes, Mais alto ainda”. Era uma tarde de Outono, idêntica a tantas outras e sentia já esse estremecimento de correr contra o tempo, fazer com que a vida acelerasse dentro do próprio tempo e partisse pelas estradas do mundo na procura de pessoas e verdades. Estava um dia de sol ameno, retemperador, nessa temperatura que nos envolve os sentidos e nos deixa frágeis mas tranquilos. Foi já na saída que escutei aquela voz, «o Saramago ganhou o Nobel». “As águas se suspendem, E no segundo final, A gestação imensa”. Não era possível parar, deter o pensamento e as ideias porque esse ponteiro que nos comanda a vida e desregra o seu usufruto, que antes de ser uma necessidade, deveria ser uma obrigação, nos empurrava para diante. No entanto, a estrada adquiriu nesse dia uma outra dimensão. Ainda não aprendera a ouvir os delírios musicais da natureza, porque só quando chegaste os havias de trazer, mas as vozes excitadas na rádio, falavam exaltando o Homem e as palavras, a vida e o amor que nelas aparecem. “Da branca espuma, Do sol, Do vento que soprou, Dos peixes, Das flores, E do seu pólen”. No entusiasmo que se pressentia, surge o poema musicado, do escritor, que desconhecia, e me vai fazer transcender as ideias e alar o pensamento. Principia num som longínquo e vai erguendo-se como a nossa existência desde criança trepando até à velhice, exaltando a vida e o seu nascimento, os frutos dos abraços e dos beijos a que os seres humanos se dedicam quando se entregam no delírio do sonho e do amor. “Das algas trémulas, Do trigo, Dos braços da medusa, Das crinas dos cavalos, Do mar da vida toda”. Deixamo-nos subir na alegria do infinito, galvanizados pela mistura dos sons e das palavras e chegamos em êxtase ao final na letícia cantada, “Nasce Afrodite, amor, Nasce o teu corpo”. Sentimos que algo se quebrou em nós no momento final do poema. Percebemos que no interior do silêncio há uma música que é premente escutarmos. Foi há 20 anos. O Nobel da Literatura foi atribuído a José Saramago. Foi escritor e poeta, um Homem do mundo, um humanista, um ser humano com a coragem de apontar os erros humanos, a ganância e a luxúria como males a erradicar e denunciar as oligarquias obscenas que mergulham o nosso tempo no caos da avareza violenta. Foi um prémio merecido. Outros o mereceriam? Acredito, mas não na vez de José Saramago.

Quando uma parte significativa de 60 milhões de brasileiros acredita que a violência pode pôr fim à violência, percebemos que a humanidade não consegue aprender com os seus próprios erros. Quando um boçal, inculto e desmiolado obtém a maioria dos votos de um país com a grandeza do Brasil, sem saber construir uma frase gramaticalmente coerente, sem uma ideia com conteúdo, compreendemos que a História se repete em tempos diferentes, com os seus mortos, os seus censores, os seus autocratas que se acreditam iluminados por Deus. 



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