Marques da Silva
Houve sempre um sonho em mim, mapear a vida. Estendia os mapas nas paredes do tempo e deixava-me seduzir pelas pequenas estradas a cores entre duas linhas paralelas, os cruzamentos, as encruzilhadas, as sinuosidades das vias que muitas vezes são idênticas às da vida, os vermelhos, os verdes e os amarelos, as indicações de destino, os rios, os lagos, as vias-férreas, tudo aparecendo em minúsculo formato que produz uma atractividade ímpar. Olhando horas seguidas para o mundo representado imaginava vales, gargantas, desfiladeiros, planícies e a mancha azul do mar infinito. Procurava adivinhar o pormenor e o que seria possível encontrar em cada lugar. Seriam de pedra nua ou verdejantes as encostas das montanhas que cresciam no olhar da minha fantasia? Havia dias que encetava viagens, caminhava pela berma de uma qualquer Nacional que me aparecia como mais sedutora, entrava e saía de aldeias cujo nome gravava em pedras douradas na minha memória. Ao fim de alguns anos pensava já nada ter para encontrar nos imensos mapas que se estendiam na minha frente. Quando tudo parecia concluído, surgiu o teu corpo no horizonte do meu destino. Viajava então entre duas galáxias, uma morta e outra moribunda, escondidas nos buracos negros da humanidade. Acreditei que o poderia atravessar como uma ponte, em contemplação do êxtase, mas sucumbi à tentação de ver nele o mapa que nunca tinha percorrido. Desisti da gravação das estradas por onde viajar, ignorei os sinais, sobretudo os de proibição, e fui como se houvesse um sentido único, sem limite. Exagerei, por vezes, na velocidade, mas havia uma sensação de liberdade no vento que deslocava na passagem. Em cada desvio, optei pela estrada mais estreita e consenti que o risco me envolvesse, pois o assombro que me chegava da natureza inebriava os sentimentos e descomandava as emoções. Seduziu-me a rosa-dos-ventos que orientava os horizontes, mas preferi acreditar no movimento do sol. À noite vadiava pelo mapa do teu corpo guiado pelas constelações. Era noite e tudo brilhava. Nas margens das estradas que subiam e desciam, havia lugares de descanso, jardins de rosas que floresciam o ano inteiro. Estendia-me nos campos de algodão que imaculavam a terra e deixava que a fadiga adormecesse horas sem fim. Uma noite, inverti o mapa e deixei-me levar pelo infinito. Invertendo os pólos, o cruzeiro do sul passou a estrela da manhã. Desenrolei o mapa em toda a extensão e permiti que o olhar se extasiasse com a sensação de loucura nas estradas imaginadas que apareciam diante do olhar. Tacteei uma vez, e outra e ainda uma outra, desenhei novas rotas, caminhos novos, semeei florestas, desbravei as colinas que desciam sobre o mar dos teus olhos. Saciei a sede nas fontes nascentes do rosto e repousava sempre exausto de cada caminhada encetada. Um dia, ao acordar, percebi que este mapa era apenas um sonho, um esboço fulgurante do desejo e da imaginação e apenas uma estrada aparecia no horizonte visível. Estreita, curvilínea e de naturezas mortas, e o nevoeiro que se abriu diante dos meus passos acabou apagando todos os mapas restantes que ainda guardava no bolso interior de um casaco usado. Voltei ao caminho, mas de passo incerto e indiferente ao destino.
Mui estimado Javier Cercas não conhecendo eu a sua obra literária tão premiada (ler um livro é demasiado escasso), não podem ser estas palavras de crítica, antes apenas de espanto e surpresa. Abordar o tema da Guerra Civil não é fácil e só os grandes escritores o podem fazer com a riqueza das palavras com que a História deve ser contada. Retenho-me pois, em algumas frases contidas na entrevista que concedeu ao JL. Sem dúvida, que em todas as guerras, os bons e os maus, estão de ambos os lados, ou não fossem elas, acções humanas, quando esgotadas ou negligenciadas as palavras. Mas, a liberdade com que a guerra permite matar, não isenta os crimes, antes pelo contrário, devem ser apurados e justiçados os responsáveis. O que perturba nas suas palavras é afirmar que a República tinha a razão política mas não a razão moral (“Fiz a distinção entre razão política e razão moral (…). A República tinha razão política (…). Significa que todos os republicanos eram boas pessoas?”). Meu estimado estremenho de Ibahernando, a República tinha a razão política e a razão moral, era democrática e legítima, e como se poderia ter uma sem a outra? Ser boa ou má pessoa não diz respeito às instituições, mas aos crimes que cada um decide cometer, mesmo que em defesa dessas mesmas instituições. E a separação que pretende fazer não «irrita» apenas “todos os fanáticos”, irrita-me a mim que nada tenho de fanático. Francisco Franco não foi apenas sedicioso e golpista, foi um criminoso, um analfabeto boçal, uma diarreia da humanidade, mergulhou o Estado espanhol numa espiral de violência que enterrou um milhão de pessoas e quarenta anos depois, o ditador ainda matava. Morreu sem pagar os seus crimes. O seu tio-avô pode ter sido um jovem cheio de generosidade que se deixou iludir pelo discurso, como diz e parece acreditar o meu caro Javier Cercas, “anti-capitalista, anti-sistema, jovem e rebelde” da Falange, mas o que não pode agora, é desculpar a responsabilidade dos seus crimes, apenas porque do lado dos republicanos também haviam homens maus, deixando que por aí se esvaia a razão moral da República. Ignorar essa Falange que gritava, «Abaixo a Inteligência», «Viva a Morte» ante a grandeza e a estatura intelectual de Miguel de Unamuno?, essa Falange que só na Galiza, onde quase a guerra não chegou, passeou, fuzilou, matou, torturou e assassinou cerca de 8 mil galegos? Diz-nos que os maus da República “mataram mais de sete mil membros da igreja”, mas olvida ou omite, dizer-nos quem eram e o que faziam esses «membros da igreja», pois não pode ignorar que a maioria era contrária à República, membros da Falange e participaram activamente nos crimes. Mas se a acção dos homens maus da igreja, não belisca a ideia de Deus, também não serão os homens maus da República a retirar a esta a sua legítima razão moral. Os crimes são outro aspecto da guerra, para serem julgados e condenados os responsáveis, não apenas do lado dos vencidos, como também do lado dos vencedores, e os destes últimos, ficaram impunes, até hoje.
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