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01/02/16

O SANDRO

Mário Faria




Atravessava a rua Costa Cabral e recordei que tinha dois cinemas, intenso movimento comercial com uma variada gama de produtos e marcas de qualidade, o Académico do Porto, o estádio do Lima, o pavilhão, o caminho para as Antas e casas notáveis da noite portuense, nas suas redondezas. O Tamariz era a mais famosas pelo excelente ambiente familiar que as meninas convidadas emprestavam à casa. Felizmente ainda vive em moldes semelhantes, apesar da concorrência brutal das novas modernices, essas sim, que abalam a harmonia do lar, quantas vezes de forma irreversível. 

Pensava na forma como o ambiente mudou por aquelas bandas. O comércio é pobre e de proximidade, o cinema fechou e o Júlio Diniz virou sala de dança. Naquela quinta-feira era suposto estar fechada, pois apenas costumava funcionar aos fins-de-semana. Havia gente que se dirigia para lá, certamente: reconheci-o, porque coincidia com o grupo alvo que a frequentava. Homens e mulheres, cansados pelos anos e ávidos por disfarçar a solidão, no paso doble alucinante e no empernanço malandro.  

Vi a lista de preços, tomei conta do nome do grupo que animava a dança com acordes a preceito, de música selecionada com gosto e pouco moderna. Deu para ouvir, no átrio do recinto que, naquele dia, tinham arrancado com o Mama Mia. Preparava-me para sair, depois deste breve reconhecimento ao local, quando entrava um “amigo de café” que não via há anos. Olhámos um para o outro, reconhecemo-nos sem hesitações e cumprimentamo-nos com afabilidade. Estava diferente.  

O Sandro estava diferente e para melhor. Apesar do frio, por cima da calça de passeio, uma camisa branca imaculada e uma camisola deitada sobre o pescoço, e bons sapatos próprios para dançar. Bem barbeado e penteado, notei que tinha retomado o hábito de pintar as unhas com verniz transparente. A última vez que tinha estado com ele, apareceu vestido com um fato de treino puído de cor vermelha e umas sapatilhas velhas, pouco condizentes com o gosto que tinha e o aprumo que o distinguia. O desarranjo era de tal proporção que só podia indicar que as suas condições de vida tinham mudado radicalmente. Não chegou aos sessenta anos, mas anda lá perto. Não passou o primeiro ciclo, mas é inteligente, bem-falante, arguto e cortês. Trabalhava à comissão para uma empresa de artigos publicitários. Não se cansava muito. Casou bem e divorciou-se depressa. Sempre teve muita saída junto das mulheres, que eram o seu principal abono de família. Falava muito animadamente de política: simpatizava com a UDP e chegou-se ao PS quando aqueles juntaram trapinhos com o Louçã e formaram o BE. É benfiquista. Não tem filhos e trata muito bem dos pais.

Trocámos perguntas sobre a família e falámos de nós e dos amigos que conhecíamos. Contou-me que mudou de vida e que a sua auto estima está em alta, desde que passou a viver com a companheira, Dulce Gouveia, enfermeira chefe, na situação de reformada e ligeiramente mais velha do que ele. Com um grupo de amigos, fazem dança sempre que possível. E todos os anos viajam para a Argentina para assistir ou participar em encontros e/ou torneios de tango argentino. Continua a trabalhar como free lance, sem pormenorizar em que actividade. Não falou de política o que me surpreendeu. A antiga enfermeira, aproximou-se: vinha vestida muito sobriamente, mas com elegância. O vestido e os cosméticos escondiam, tanto quanto possível, os danos da idade e ajudavam ao bom aspecto que tinha. Ele puxou-a delicadamente e foram-se para a sala de dança, acenando e correndo aos saltinhos, cheios de vida e de alegria.

Uns dias mais tarde, passei pelo antigo café que frequentava e fui cumprimentar o Luís que conhece muito bem o Sandro. Contei-lhe o encontro e ele disse-me, baixinho, para a mulher não ouvir, o seguinte: “não sei se ela é ou foi enfermeira; dizem que deu muitas picas, segundo as más-línguas, antes de casar com um médico muito mais velho, a quem tratou exemplarmente enquanto foi vivo, e que lhe deixou una fortuna. O Sandro, encostou-se bem. Ela merecia melhor. O tipo está um pedante insuportável e vai dar-lhe cabo de tudo”. Calou-se quando a esposa se aproximou e passou a falar de futebol e da estrondosa vitória do Marcelo que vai correr com os vermelhos. 

A narrativa do Zé da Frutaria foi bem diferente: contou-me uma versão nas antípodas da do Luís. Em suma, disse-me que os dois formavam um casal perfeito, que eram muito amigos e excelentes pessoas. E avisou-me: “não vás na conversa do Luís, ele é um coscuvilheiro invejoso e odeia o Sandro; é um complexado que treme quando a mulher espilra”.

Não sei, mas acho que sigo esta ultima versão. O Luís é muito reacionário!

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