Mário Martins
Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça |
“Há uma dissimetria demasiado intensa entre a realidade e a percepção que a comunicação social tem da Justiça”
Henriques Gaspar, Presidente do STJ, Jornal Expresso, 25Jan2014
O escândalo que me provocaram as citações na comunicação social do discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, na cerimónia de abertura do ano judicial de 2014, de que “não há crise na justiça” e que “os tribunais respondem com eficiência”, - nada, aliás, de que o autor não estivesse à espera: “embora para as percepções instaladas constitua heresia que me conduzirá direito ao pelourinho da opinião”… -, conduziu-me, mais a frio, a ler o discurso, não só para conferir a veracidade dos títulos como também verificar se o contexto os autorizava.
Em abono da sua tese, defende o Presidente do STJ que “no quinquénio de 2008 a 2012 a evolução da situação processual foi consistente e positiva”; que “em geral, as taxas de resolução têm sido positivas e as taxas de congestão diminuíram sensivelmente”; que “os tempos de resolução também apresentam alguma evolução positiva na maior parte das espécies processuais”; que, quer o Supremo Tribunal de Justiça quer os Tribunais da Relação, “têm prestações de elevado nível, na qualidade e nos tempos de decisão”.
O Presidente do STJ reconhece, todavia, “algumas dificuldades” ao nível dos Tribunais de Primeira Instância, que “estão identificadas”: “pela dimensão esmagadora dos números (…) está a acção executiva”, que “representa mais de 70% de todo o contencioso pendente nos tribunais”; a “desproporção na utilização dos recursos processuais executivos por parte dos grandes utilizadores, que torna qualquer sistema ingerível. Bastará salientar, por exemplo, que (…) só as dívidas a empresas de telecomunicações – estando em causa centenas de milhar de pequenas quantias – ascendiam a mil e trezentos milhões de euros, ou seja 0,8% do PIB”; além disso, “a crise acrescentou factores de complexidade que se projectam exponencialmente nos tribunais de comércio”. Mas não sem rematar que “as dificuldades – reais – são comuns a todos os sistemas de justiça, e não apenas no espaço europeu; e (que) a justiça tem sofrido ao longo dos anos mais recentes um «excesso de diagnóstico»”.
Em suma, parece-me lícito concluir que, para o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, se há uma crise na justiça, ela não é especificamente portuguesa.
Como compaginar esta avaliação com o modo como, por exemplo, Nuno Garoupa resume o estado da justiça portuguesa, em ensaio editado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos: “corporativismo nas magistraturas; falta de planeamento, avaliação e realismo legislativo; divórcio entre os tribunais e a sociedade; congestão com mais de um milhão de processos pendentes.”; ou com os dados estatísticos segundo os quais “temos o dobro dos tribunais da Suécia por 100 mil habitantes, mas demoramos mais 233 dias a resolver os processos. E que a Espanha tem também metade dos tribunais e demora menos 134 dias a fechar os casos” (conforme editorial do Jornal Público, de 27 de Janeiro passado); eis o problema.
A percepção de um cidadão comum é que a justiça portuguesa deixa muito a desejar, seja ao nível legislativo, com uma grande profusão de leis, tantas vezes com redacção confusa, escapatórias de conveniência, ou expedientes dilatórios, seja ao nível executivo, em que cada governo quer fazer a sua reforma sem cuidar dos devidos consensos, do horizonte temporal necessário e de uma adequada distribuição dos meios, seja ao nível da investigação e acusação públicas, em que os crimes que não envolvam violência tendem a ficar cada vez mais impunes, ou em que os crimes de “colarinho branco” muitas vezes se ficam por uma condenação mediática, seja ao nível judicial, em que os tribunais dispõem das pessoas como lhes apetece, ou em que a demora das decisões prejudica a eventual qualidade das mesmas.
Terminava assim o editorial do Jornal Público: “Até hoje, não fomos capazes de iniciar uma reforma de fundo e levá-la até ao fim. Medidas avulsas seguem-se a medidas avulsas. A sessão solene de abertura do Ano Judicial 2014 é esta quarta-feira no belo Salão Nobre do Supremo Tribunal de Justiça. Irá alguém dizer o que é preciso?”
A posição do Presidente do STJ indica que vai ter que repetir a pergunta no ano que vem.
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