Alcino Silva
Estância Puerto Consuelo, Puerto Natales, Província Última Esperança, 27 de Fevereiro de 2014
à redação da Periscópio
de novo vos escrevo com estas longínquas palavras acalentando a ideia que vencerão a barreira da distância e possam juntar-se às vossas para essa composição mensal que são as nossas reflexões expostas à leitura daqueles que também procuram, como sempre procuramos, alimentar os sonhos. As temperaturas vão amenas, mas nota-se já um pouco do vento que chega do cerro Balmaceda com os seus 2 mil metros de neve, e nesta noite em que alinho estas letras em inconsequentes frases, as temperaturas baixaram até ao nível 0. Hoje caminho ao longo do fiorde por paisagens que deslumbram e em certos momentos deixam-nos nessa incapacidade de respirar face à beleza da natureza que nos rodeia e imobiliza o olhar. O tempo vai passando. Em certos dias desliza como estas pedras sólidas de gelo quando se aproximam da liquefação, noutros, tudo parece mais lento, como se o movimento se detivesse e a nostalgia do que deixamos, assume a importância do inesquecível. Não são apenas os lugares e os hábitos, essa rotina de olhar o mar, deixar que os pensamentos se percam na linha do horizonte, são sobretudo as pessoas, de forma muito saliente, aquelas de quem gostamos, como essa rainha egípcia por quem a minha vida se perdeu e parece já não atravessar os jardins de Luxor, apesar da minha memória a fazer cruzar a todo o momento os caminhos que me levam. Tantos anos nos separam, mas como sentimos a perda dessa princesa tão extraordinária que a história conhece como «a bela que chega».Mas hoje ocorre-me pensar que esta é a época em que a pequena cidade a norte se embeleza como a capital da literatura e durante três dias, as palavras ocupam-lhe as ruas, enchem o litoral de sabores poéticos e pelas suas avenidas corre a rebeldia do sonho. Por ali ficava, bebendo a voz daqueles que com uma pena reescrevem a humanidade, nos seus romances, nas suas histórias, nas suas vidas, nuns casos com esse encanto que só a magia da utopia faz nascer, e noutros com a dureza da realidade mostrando que a marcha da história contém imensos frutos amargos e até o professor que fez carreira política no fascismo, inebriado pela nobreza das frases que voavam soltas pelas salas, dirá que «o poder das palavras pode desafiar as palavras do poder» e sente-se que podem, quando como um canto, como essa marcha dos Homens pelas areias do deserto procurando oásis, fazem estremecer o poder e os poderes, os quais para sobreviver, também eles recorrem à palavra, mas àquele verbo falso da ilusão e às frases da infâmia, que não cabiam, não podiam entrar naquela sala onde só airreverência romântica tinha mar para navegar. Como nos emocionávamos quando se desfraldavam as velas amplas dos navios naqueles dias, como ancoravam as quimeras em baías aconchegadas em mundos novos, satisfazendo a ânsia em que buscamos novos mundos e até o mar se aquietava na sua revolta invernal e as suas poderosas ondas alcançavam terra em silenciosos murmúrios, para que também a massa oceânica pudesse escutar as palavras que transportadas pelo vento alcançavam a alma dos Homens. Eram dias de fantasia que me permitiam embarcar num tapete voador, planar sobre a vida e sentir esse amor que os humanos conseguem aquecer quando no sangue lhes corre as chamas incendiadas do porvir. No fim, quando tudo terminava e a festa conhecia esse instante do silêncio, sentia de novo a solidão e a nostalgia que agora me visitam nestas terras de exílio, onde os meus olhos recordam e a alma se enche dessas lágrimas que não choramos como escreveu Neruda. Em breve a tarde no seu fim se vai aproximar de mim e farei as despedidas de mais um dia, deixando que o olhar parta por aí, por esses prados, essas encostas, essas pedras escondidas por verdes folhagens, deixando abraços de agradecimento pela sua existência me permitir alcançar esse estado vivencial onde se cruza a fantasia e a verdade, os meus delírios podem ainda palmilhar as pedras duras dos caminhos que conduzem aos lugares onde a rebeldia se refugiou da ignomínia dos sátrapas, esses dejectos humanos que ocuparam o poder. Um abraço sempre saudoso para todos vós.
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