António Mesquita
"China, um toque de pecado" |
Não podemos, enquanto ocidentais, ver o magnífico filme de Jiang Zhang-Ke, "China, um toque de pecado", simplesmente como quatro histórias de violência, a sugerir, evidentemente, um mal-estar social mas que não fosse mais do que a violência de um certo cinema, como por exemplo o dos irmãos Cohen, desde há muito 'compreendido' no contexto da sociedade americana e do seu cinema.
Dahai, o mineiro que assassina o patrão da mina que enriqueceu com a venda da propriedade do Estado e o ludíbrio dos seus antigos companheiros a quem prometera a partilha dos lucros, não é um 'desperado' saído de um qualquer 'western'. A sua revolta e o desespero na justiça oficial firmam-se no que é a linguagem do regime, a ideologia do Estado da Classe Operária. Esta primeira história é, de facto, a mais política pois confronta a natureza do poder e a sua alegada superioridade em termos de justiça.
Já as histórias seguintes, de uma violência banalizada e de exposição dos círculos de corrupção, têm todas a ver com o poder do dinheiro. Seja o que rouba para se safar na selva urbana, ou a recepcionista do estabelecimento de sauna que responde com golpes de punhal à prepotência do cliente endinheirado. Na outra história, a vítima dirige a violência contra si mesma, depois de errar de emprego em emprego, e da mulher que ama lhe demonstrar o que significa ter de se prostituir.
Percebemos que esta sequência narrativa pretende representar uma visão da China moderna, desde que os seus líderes se julgaram suficientemente fortes para meter dentro de portas o tigre do capitalismo.
Sem pôr em causa o regime, nem beliscar nenhuma figura da burocracia, o cinema de Jiang Zhang-Ke dá-nos a ver a grande mutação em curso que é, ao mesmo tempo, anti-tradicional e individualizante. É o que significa o anti-herói que protagoniza cada história.
Nos últimos minutos do filme, uma dessas figuras solitárias aproxima-se dum teatro de rua, em que um dos actores, dirigindo-se aos espectadores, pergunta: "Tendes consciência do vosso pecado?"
Ela matou o violador de carteira recheada (como em 'Thelma e Louise', o filme de Ridley Scott). Mas a pergunta pode ter um alcance mais vasto. A passividade tem permitido tudo. Estes crimes dizem que a violência é a outra face dessa ausência da política.
Registe-se que o filme não foi censurado na China, ao que parece. Terão os censores interpretado mal? Não era a primeira vez nos anais censórios. A luta oficial contra a corrupção dentro do partido faz parte da vacina contra a verdadeira solução: uma solução democrática.
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