Alcino Silva
(Wong Hityun) |
É uma noite fria, muito fria mesmo, esta que escolhi para te escrever uma carta, para conversar contigo através desta triste carta, como são todas as que se escrevem no Natal, mesmo que o destinatário seja alguém tão amado como esses seres que vivem no interior da luz que contém a energia que permite acender todas as estrelas que brilham na universal noite do infinito.
Desta minha janela, sinto o frio que imobiliza as folhas dos arbustos e endurece o chão gelado e branco, tão alvo de cor como a montanha que se estende do outro lado deste lago tão imenso como o mar e onde se perdem os meus olhos procurando-te. Ouço o vento entre o murmúrio e a rajada forte, soprada a espaços, cortando o ar que respiramos e fazendo estremecer o corpo que em nós vive.
Há pouco estive no exterior. Sentei-me no banco de madeira onde tantas noites nos sentamos escutando o silêncio do céu e vendo cair as estrelas sobre o glaciar. Então, esperava que chegasses com essa ansiedade que fazia imobilizar o relógio do tempo, como se os ponteiros ficassem cansados de trabalhar. Por fim, surgias, ao longe, e no horizonte via desenhar-se a silhueta esbelta do teu corpo enquanto o meu pensamento construía os pormenores que em breve se tornavam realidade junto a mim. Os traços perfeitos dos teus lábios, esboçavam um sorriso, que me imobilizava a voz e fazia desaparecer as palavras que guardara para te dizer, enquanto o teu olhar, fazia nascer um rio de águas cristalinas como essas que a montanha traz.
Sentados, escutando o silêncio que trazias contigo, percebia as tuas mãos, com os seus dedos finos e elegantes, escondidas em grossas luvas, rodeando-me o braço, procurando abrigo, enlaçando-se como um nó que não deseja ser desatado. Então falava, contava histórias do mar e da lua, e tu escutavas, ou antes, escutava-me o teu silêncio, porque foi sempre um grande silêncio a responder às minhas palavras. Mas escutavas, sei que escutavas, porque sempre me ouviste, enquanto me desdobrava em inventar frases e parágrafos, como se soubesse que, deixando de falar, deixavas de estar.
Uma noite, atravessamos o mar, lembras-te? O intenso luar incentivou-nos e, sem saber como, os meus braços remaram e remaram. Só escutávamos o meigo sussurro dos remos a abraçar a água, como se pretendêssemos não acordar a noite. Rodeamos o farol e já no caminho, a tua mão procurou a minha, como amparo e guia. E assim fomos, descendo a encosta para observarmos aqueles pequenos animais de duas patas e peito branco, bamboleando o corpo ao longo da praia. As ondas arrastavam-se preguiçosas e curtas sobre a areia grossa, num ruído sereno e cadenciado como se dormitassem em sossego.
Mas esta noite não vamos atravessar este mar, porque não vens, e o nosso banco está também ele só, apesar de o meu olhar estar sempre a ver-te quando se volta para o caminho que te trazia. Há pouco, no livro onde escrevo as horas do meu tempo, registei estas que vivo aqui, hoje, esta noite, em que te aguardo e não chegas: «Esta é a noite diversa de todas as outras. O mesmo mar e o mesmo céu com a sua imensidão de brilhantes pontos luminosos e distantes, o mesmo rumor dos remos sobre a água, o mesmo destino e a mesma intenção, mas algo falta e o que falta é tudo o que havia, e faltando tudo, tudo o que parece na mesma, não existe, e por isso, nesta noite, eu que pareço o mesmo, não sou eu, mas antes o que deixou de ser. Desembarco e caminho, os passos guiados no trilho de sempre, mas o silêncio é novo, banhado por esta noite solitária onde moram os esquecimentos que nascem do que deixou de estar. Onde estão as aves marinhas de coroa amarela que me recebiam quando cheguei e o novo era o que não sabia, o que não conhecia, o que não vivera? Estão ali nas suas cores escondidas nas sombras e olham com um sentimento de curiosidade como se observassem um náufrago que não sabe a que litoralarribou. A luz, a luz do farol apagou-se nesta noite de relâmpagos tristes que deambulam caindo do universo sem que alcancem o terreno chão, e os prados queimados pelo frio, já não são o cobertor que se estendia para albergar o meu corpo. Eu sou eu, na minha solidão.»
Sim, a solidão não é estarmos sós, mas antes e apenas quando não chegas, apesar de a memória te guardar nos rios do tempo. Os meus passos ainda seguem o caminho de outrora e os gestos repetem os movimentos passados, como se estivesses presente, mas só o pensamento e as palavras impulsionam vida à imagem que reflecte a tua presença no espaço temporal em que chegavas e acendias a luz que faz arder as estrelas, e juntos aprendemos a amar ao som da água que descia das montanhas no degelo da Primavera.
Esta é uma noite fria, não porque sopra o vento do glaciar, não porque a terra gelou e o mar solidificou ou porque a lareira não acendeu o vermelho das chamas da madeira que se transforma, mas antes, porque não vais chegar com, a alegria da tua presença, o sorriso amável da ternura, o olhar puro que me protegia.
A noite está fria e “a solidão desola-me”1.
“E às vezes, o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem”2
1 – Fernando Pessoa
2 – Sophia de Mello Breyner Andresen
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