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01/08/13

OS ENCONTROS COM DEUS

Alcino Silva

 

Perdera já na memória as vezes que assim acontecera, mas todos os anos, no primeiro dia, chegava cedo e aguardava, afastado da porta e do ajuntamento que crescia junto desta, que o acesso fosse permitido. Entrava e sentava-se como sempre no último banco na extremidade do meio. Alheava-se do ir e vir daqueles que se mostravam, dos convidados que privilegiadamente se sentavam na frente, ignorava propositadamente a luxúria do barroco e deixava-se escorregar no estremecimento da dureza da pedra e na pureza da alvura da abóboda. Quando a doçura dos primeiros sons começavam a percorrer a álea central, sentia como se estivesse no interior de um avião a rolar pela pista em rota de ascensão. Deixava-se ir como se olhasse pela janela e visse as casas diminuindo de tamanho e o mar se deixasse contemplar no brilho intenso que os raios solares faziam nascer nas suas águas. O destino era sempre a aldeia nas montanhas a uma altitude que a colocava acima de todas as outras. A sua viagem tinha início no planalto, uma espécie de terreno ondulado que fazia a estrada adquirir a beleza das formas perfeitas. Imobilizava o pensamento e o olhar, escutava o vento e sentia que em si penetrava o canto longínquo que há milénios atravessava o Mediterrâneo. Um canto de dor, na doçura de um sofrimento que parece não se extinguir entre os que sobre o azul forte das águas tentam encontrar outros lugares, os que ali combateram, os que de algum modo alcançaram o que procuravam. A melodia penetra o tempo e a memória e fazem nascer nos olhos essas águas que o sentimento não retém e escorrem tristes para a alma. Em seu redor, tudo canta, tudo exprime a alegria e o sofrimento, o tempo e o finito, a dor da morte e o prazer da vida. É então que na sua viagem, sente a presença de Deus, do Deus que sabe não existir e os crentes nunca encontram apesar de numa fé sem limites acreditarem na sua existência. Deus chega porque Deus é música, mas os crentes não sabem porque só conseguem escutar os seus próprios lamentos. As ruas estreitas da aldeia, sossegam-lhe o frio que o vento glacial parece arrastar na sua passagem, mas os seus passos, dirigem-se para a fraga, para o ponto minúsculo e branco no cume isolado da cordilheira serrada. O caminho é pausado, mas quando chega deixa que o olhar se perca, adquira as asas de condor e sobrevoe o vale, gire sobre si próprio, sinta o devaneio das alturas, absorva a grandeza do granito que se acotovela como se lhe faltasse espaço, passeia o pensamento entre os castanhos cinzas da pedra milenar que por ali ficou quando o calor da matéria em fusão se extinguiu. Sente o poder da beleza que esmaga a pequenez da sua existência, e Deus regressa, porque Deus é beleza, mas os crentes não sabem, porque estão demasiado preocupados em olhar para si próprios. Desce com o sabor da perfeição desenhando o caminho do vale, mas não regressa a aldeia, prefere a vereda que conduz ao mosteiro, e por ali fica, sentindo o canto matinal dos monges acordando a madrugada e experimenta essa paz interior que resulta da harmonia da paisagem, da cadência que nasce do estar e sentir, do conviver pulsando a vivência da floresta e do murmurar do rio na sua procura de espaço aberto. Sente a tranquilidade e a serenidade do lugar e Deus volta a encontra-lo, porque Deus é silêncio, mas os crentes não sabem porque vivem ouvindo apenas as suas orações para remissão de pecados que cometem, quando não sabem viver com a música, a beleza e o silêncio de Deus. O tempo passou, apercebe-se que os bonitos sons dos instrumentos que o fizeram viajar, estão de regresso, vão voltando com essa tristeza melancólica de quem parte e tem de se despedir do que e de quem ama. Percebe que o avião perde altura, o mar está de novo próximo, as casas começam a aparecer como desenhos perceptíveis e então, a aeronave estremece e as asas balbuciam sopradas por uma rajada de vento. No seu pensamento exprime-se o desejo que o piloto seja competente enquanto o passageiro ao seu lado quase grita «que Deus nos ajude», mas Deus não ajuda, por isso é que os aviões caem. Deus existe para mostrar caminhos, mas a preguiça dos crentes, só lhe remete pedido de ajudas. Que bom é esse Deus dos crentes que lhes perdoa tudo e assim podem pecar porque serão sempre salvos, não se dando ao trabalho de escutar a sua música, apreciar a sua beleza, usufruir do seu silêncio e por essa razão morrem sem encontrar o seu Deus com essa esperança de que o paraíso permita por fim esse encontro, mas o paraíso é apenas uma fantasia humana. O avião tocou o solo, desliza suavemente na pista, os sons da música calaram-se e escuta-se agora o agradecimento pelo prazer da viagem. Com o mesmo silêncio que chegou, se retira. No olhar leva, a música, a beleza e o silêncio desse Deus que não existe.

 

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