Mário Faria
Vivia do mesmo lado da cidade e habitava uma daquelas casas de um bairro social da zona. Era um jovem adulto, baixo, loiro, de feições rudes, falava alto e entrava em conflito demasiadas vezes com aqueles com quem se relacionava. Eram demasiado grosseiros uns com os outros para poderem ser amigos. Conhecia-o à distância e privava com ele de forma cortês, mas sempre afastado, porque não éramos da mesma geração nem tínhamos vínculos que nos pudessem aproximar.
Passei a vê-lo com menos regularidade, porque entrou em rota de colisão com os amigos. Passou a frequentar outras redondezas e lá fez novos amigos de ocasião. Passei a vê-lo com menos frequência, mas dava para constatar que entrou num processo de degradação acelerado. Perdeu o emprego, passou a beber ainda mais, tornou-se alcoólico, perdeu a mulher e a família que o abandonou, sem direito a recurso. Sempre que o via ou estava embriagado ou com atitudes grosseiras e violentas, por falta de dinheiro para consumir álcool. Por uma vez, saiu-lhe mal a bravata e foi brutalmente agredido, tendo sido hospitalizado com uma série de lesões de média gravidade na cabeça e na cara. Em função dessa cura forçada, andou direitinho alguns meses, mas recaiu e o tombo foi definitivo. Deixou de ter acolhimento junto das associações públicas ou privadas que lhe davam apoio e fez da loja Multibanco a sua casa. Viveu lá muitos meses e foi sempre muito próximo do local que lhe servia de moradia que o vi mais algumas vezes: ou muito bêbedo e feito um farrapo ou quase sóbrio e, nesses momentos, vagueando pela rua que nem um zombie. Impressionante era a feia máscara em que o rosto se tinha tornado, massacrado pela fúria do vício.
Foi na tabacaria, onde compro habitualmente o jornal, que tomei conhecimento que o homem tinha morrido durante a noite, ao que parece vítima de um ataque cardíaco, segundo a mensageira que deu a notícia de forma condoída. Fiquei surpreso e com pena pela morte de um homem que sempre detestei, provavelmente porque durante a sua vida só encontrei os defeitos que o "desaparecimento" sempre humaniza. Nunca pensei que o seu falecimento ainda daria muito que falar. No dia seguinte, no mesmo sítio e na altura que estava em fila para comprar o Público, esperando pacientemente que as velhinhas do costume terminassem os jogos da raspadinha, a mensageira entrou de rompante na tabacaria e gritou: “Foi crime!”. Tinha havido uma denúncia, a polícia judiciária tinha feito uma minuciosa investigação no local e falado com os mais próximos da vítima que teria sido morto por envenenamento com estricnina. O móbil do crime teria sido o roubo, pois os familiares garantiam que o homem tinha obtido um prémio elevado no Euromilhões, notícia que tinha deixado cair, por raiva, durante uma brutal discussão com os familiares, aquando de uma visita que fizera à sua antiga companheira. O dinheiro tinha voado e apontava-se o dedo a vários suspeitos que tinham em comum ser toxicodependentes. O crime, como ideia para a morte daquele infeliz, deu-lhe a notoriedade que nunca tinha merecido em vida. Talvez por isso ou por mero voyeurismo, a vizinhança cavalgou com prazer no jogo e os mais criativos acrescentaram algumas saborosas dicas ao homicídio.
O crime nasceu de repente e teve morte súbita: o funeral da “vítima” ocorreu dia e meio depois de ser encontrado sem vida, da forma mais humilde e quase sem acompanhamento. A morte seguiu o curso da sua vida. Não houve detenções porque nunca houve denúncia nem suspeitos e o enigma resultou de uma enorme cabala. No bairro, consta que o trama foi lançado por D. Dorotéia* que é useira e vezeira nessas práticas. Continua sem fadiga e remorso a desenvolver as suas actividades e agora juntou-se ao grupo da raspadinha de que se tornou fiel fã. É assim a gente cá do meu bairro.
*D. Doroteia é o nome de uma personagem do romance (e telenovela) de Jorge Amado : Gabriela, Cravo e Canela. A alcunha, assenta-lhe que nem uma luva.
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