Cristina Guerreiro
Às sete atrasadas saía e batia com a porta escapada da mão, carcaça mordida na boca, camisa desabotoada, gravata no bolso. Era sempre a descer e a escorregar até encontrar o outro que nos mesmos preparos e de cigarro nos beiços o espreitava das águas furtadas, de tronco a furar a pequena janela, quando a esquina se dobrava para mais uma descida íngreme em pequenos degraus polidos até se desprender em rua de cubos graníticos habituados à guarda montada.
O corte do assobio e a resposta, códigos.
As quatro pernas corriam desalmadas, as camisas como velas enfunadas e protegidas pelas laterais dos casacos, os sapatos ritmados no som ecoado do silêncio batido no solo e que desperta o início do dia.
Suados, vermelhos, ajeitaram calças e genitais, penduraram gravatas, alisaram a popa da moda, sentiram as moedas chocalhadas na poupança da corrida. Sábado haveria lanche.
Entraram no barco, galgaram o lance de escadas, puseram-se à ré e ao fresco pendurados no varandim circundante, cumprimentaram o Mestre.
Na concha da mão protegeram o lume do fósforo e no consolo, expeliram fumo pelas ventas, olhos fechados, a mão a vaguear pelo rosto mal barbeado, o som do coração a escutar-se maior que as bombas do barco e todo aquele lençol de água a pedir companhia, um leito imenso.
- Ali é o mar.
- Onde?
- Ali.
- Um dia hei-de ir por ali, não hei-de vir a correr como um doido para me enfiar num barquito como este e só chegar aquele lado.
- Mas ali é o mar! E tu sabes bem o que isso é.
- Não falo desse mar, falo de outro.
- Pois eu falo do mar que leva os homens, falo da guerra, falo que quando voltam, quase sempre vêm deitados e eu quero continuar a correr!
- Eu não. Eu quero ir por aquele mar que me há-de levar para um sítio diferente, quente, bonito, onde não tenha que correr nem usar gravata, nem morar num sítio onde tenho de andar dobrado.
- Pois sim, estou a ver que tens medo de perder comigo!
- Vai uma aposta?
- O que é que vale?
- O mar.
- Não, isso não.
- És um medroso. Do outro lado é o mar.
- Do outro lado do quê? Da nossa vida?
- Do nosso sonho.
- Não quero falar mais sobre estas coisas. Já chegámos.
- Encontramo-nos no regresso, até.
Na volta as sete eram esticadas em paragens de passos de tango, dois à frente rápidos, um lento, afasta à esquerda, gargalhada, repetição.
Mas só o ruído das sombras despegadas pelas solas no escorrer da penumbra, recordava o ciclo dos dias para quebrar a excepção dos anos. Houve tosse puxada para inicio de conversa. Medo também. E principalmente a vontade de não haver lugar para dizer fosse o que fosse.
- Não digas.
- Não disse nada.
- Não digas que me vais dizer que te vais embora.
- Não vou. Vou à procura do mar. Depois volto.
- Já disseste e eu pedi para não dizeres!
- Mas que difícil é falar contigo! Porque não vens comigo?!
- Porque eu não sou como tu. Eu tenho o rio.
- Eu preciso do mar, só assim saberei ver o rio.
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