Alcino Silva
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Era uma dessas tardes calmas de Primavera, sol ameno e uma brisa ligeira que ajudava a manter a atenção desperta. Estávamos ambos calados, mas por razões diferentes. O meu companheiro porque desejava dizer algo e eu porque o pressentia. Já não nos víamos há muito e o acaso levou-nos até ao litoral naquele dia. Após o balanço dos tempos de afastamento ali ficamos nessa contemplação muda do oceano. Mais tarde, interroguei-me se aquela conversa chegou a existir ou simplesmente foi um desses momentos que tantas vezes me acontece, ao deitar, alguém liga um rádio que funciona no interior da minha cabeça e começo a ouvir conversas tipo conferência. Não, música é muito raro. Uma vez, ou outra, consigo escutar essa música espantosa de Jordi Savall sobre a tragédia cátara, mas esta música é antiga, vive em mim há já oitocentos anos. Não, quase sempre são conversas, diálogos, e algumas são interessantes e chego a parar a leitura para as escutar. Por fim adormeço e de manhã quando acordo alguém já desligou aquele rádio e na cabeça só restam recordações, pensamentos e algumas ideias. Mas não, aquela conversa aconteceu mesmo. Pensando bem não tenho dúvidas sobre aquele encontro e tudo se ajusta à vivência daquele meu amigo. «Já foste feliz? Sabes o que é a felicidade?». As perguntas vieram assim como um desembarque quando estava com as defesas em descanso, mas não respondi, julguei compreender que só as fazia para procurar as respostas e não para conhecer a minha opinião. «Por mim nunca fui feliz, não porque não o desejasse e não pudesse, mas porque não sei. Não sei chegar a esse sentimento tão exaltante. Nunca soube dançar, nem naqueles tempos em que dançar significava sentir o outro e quando percebia que a felicidade se aproximava, recuava para junto do reposteiro vendo-a chegar junto dos outros. Foi sempre assim, desde criança. A timidez ajudava, é verdade, mas não era apenas isso, era também algo que cresceu em mim, cresceu com o corpo e ganhou essa dimensão devastadora de calar as emoções. Mas um dia apareceu-me, a felicidade. Assim, sem mais nem menos, quando estava desarmado. Foi no mês de Maio, creio. Era uma Terça-Feira, isso lembro-me. Não sei porque me lembro, mas sei que era esse dia da semana. E foi pela hora do almoço. Seriam talvez umas doze e trinta. Estava na cozinha a preparar a refeição, andava naquele vai e vem de leva prato, traz guardanapo, tira a sopa, quando bateram à porta e nem ouvi à primeira. Só quando soaram mais duas pancadas, parei. Sim parei, recordo bem, no meio da sala com um prato na mão, a pensar. Bateram à porta quem me procurará! Deve ser engano. E abri assim com aquele ar de quem vai dizer, não tem mal, esteja à vontade, mas é na porta ao lado. Não, não disse isto, apenas pensei, pois ao abrir a porta, fiquei assim, como se tivesse a assistir pasmado a um acontecimento gigantesco, como uma dessas ondas do Pacífico que nos cobre de cima para baixo. Na minha frente estava um desses rostos espantosamente belos que nos deixam os pés colados ao chão, como antigamente ao atravessarmos a rua nos dias de calor e com o alcatrão a derreter, as sandálias ficavam presas. Os minutos passavam e eu com a mão agarrada ao fecho e sem uma palavra, preso naqueles olhos que traziam o sol a nascer mas como já era meio dia, brilhavam muito, quando ouvi dizerem-me com um desses sorrisos que vêm ter connosco e fazem com que se ligue dentro da nossa cabeça uma máquina de lavar no ponto de centrifugação, olá, sou a felicidade! E eu só saí daquele pasmo quando ouvi que me pediam para entrar. Naturalmente que sim, esteja à vontade, pode sentar-se, quer um chá? Um chá e o almoço para servir! Creio que ficamos assim, a dizer tolices, quando a felicidade chega até nós. Tentou conversar, mas percebi que alguém me tinha levado as palavras todas, ainda tentei o dicionário, mas não adiantou. Fui respondendo, sim, não, como os miúdos quando vão à televisão, gostaste? Gostei, e o diálogo termina. Passado algum tempo, despediu-se, com o mesmo sorriso a mesma alegria, mas em silêncio. Deixei a porta aberta, mas porque já não sabia se a casa tinha porta. Assim foi o meu contacto com a felicidade». Ficamos calados, nessa mudez que se escuta e perturba e nos faz humedecer as mãos à procura de fazer ou dizer algo. O mar continuava a chegar de mansinho até à praia e eu a perguntar-me sobre o que se deve dizer nestes momentos e arrisquei aquela pergunta que sai sempre como se estivéssemos a falar de outra coisa. E não voltaste a encontrá-la ou a procurá-la? «Sim, procurei, dias a fio, durante anos. Via-a ao longe e ficava eu nesse querer ir sem saber como. Uma vez telefonou, disse para não me afastar que gostava de mim. Mas sabes como é, continuei a não saber o que lhe dizer e acabou por desistir. É assim a vida, não chega desejarmos ser felizes, é importante saber usufruir da felicidade. Para que tal aconteça, não basta querermos ou necessitarmos, é preciso sabermos oferecer aos outros o que desejam receber de nós, e eu não soube». Era melhor não prosseguir pensei eu, e quanto às perguntas que me fez, preferi não responder, tive medo da minha resposta. Optei por pensar que era melhor pedir para me ligarem aquele rádio que às vezes se acende dentro da minha cabeça, mas de preferência, com música, a da tragédia cátara.
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