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01/11/12

IMPRESCINDÍVEIS

Alcino Silva
(joshbrewsterphotography.com)


“Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Escrever, por exemplo: a noite está estrelada,
e tiritam, azuis, os astros lá ao longe.
O vento da noite gira no céu e canta.”



Os sons da tua música, chegaram-me numa tarde de sol em caminho de montanha, nesse tempo em que nos sentimos sós rodeados de gente, e volteavam por entre a folhagem verde e desciam até mim, procurando unir a sua melancolia à que em mim viajava. Mas esta noite neva. Por entre a escuridão do espaço, flocos de neve tombam na terra em pingos de tristeza. Pousam no chão e na minha alma, pelo que também poderia eu esta noite, escrever os versos mais tristes e silenciosos enquanto vejo os teus dedos baixar sobre as teclas e escuto a melodia assombrosa que sai do interior de ti. Vejo as tuas mãos descerem, Ludwig e os dedos quais estrelas cadentes iluminando a noite, pousarem com doçura nos pequenos rectângulos brancos e negros do piano e uma sonoridade magoada ergue-se como um pranto de silêncio.


“Posso escrever os versos mais tristes esta noite. Eu amei-a e por vezes ela também me amou. 
Em noites como esta tive-a em meus braços. 
Beijei-a tantas vezes sob o céu infinito.”




Ouço-te e lembro-a, recordo-a nesse cântico silencioso que brota, como ramos de uma árvore cansada e só, do teu génio criador, das tuas mãos que descem como um sentimento, como essa carícia que era o seu rosto quando também as minhas mãos desciam reclamando galáxias de ternura, essas infinitas constelações de estrelas que viviam nos seus olhos e enchiam o universal abraço com que a minha imaginação lhe rodeava o peito, lhe cercava a alma e tu absorto, dedilhando melodiosamente, umas vezes com os dedos constantes, outras com essa mágoa que sinto no teu pensamento com essa grandeza que inunda o meu e como lembro de a ter em meus braços nessas noites em que um cântico de silêncio planava sobre o meu sonho. Sim, sobre o céu infinito e quantas vezes a amei. Talvez também ela me tenha amado nas palavras que me escrevia como a tua música, cadente e silenciosa, escritas em brancas letras que só eu lia.

“Ela amou-me, por vezes eu também a amava. Como não ter amado os seus grandes olhos fixos. 
Posso escrever os versos mais tristes esta noite. 
Pensar que não a tenho. Sentir que já a perdi.”



Como traduzir em palavras a melodia serena, tranquila, melancólica, desgostosa que sai dos teus dedos e se espalha em mim, como traduzir esses sons de beleza que o teu prodígio produz e embalam esta minha solidão que qual mar dolente humedece a praia dos meus sonhos perdidos. Como traduzir em palavras, Ludwig o amor daquela mulher que por vezes também me amou e hoje voa em espirais de vapor lembrando as primaveras mágicas da adolescência. E por vezes, também a amei. Por vezes? Quão injusto consigo ser nesta noite de lágrimas correndo pela memória. Ela foi pretérito e futuro, foi olhares e sorrisos, foi sol e lua, mar e terra, foi nau descobridora e porto de abrigo. Os teus dedos parecem pousados sobre o mesmo espaço, subindo, descendo, acelerando, e essa carícia que me envias em música, limpa o pranto desta noite em que posso escrever os versos mais tristes e pensar que não a tenho e sentir que a perdi.




“Ouvir a noite imensa, mais imensa sem ela. E o verso cai na alma como nos pastos o orvalho. 
Importa lá que o meu amor não pudesse guardá-la. 
A noite está estrelada e ela não está comigo.”



Uma e outra curva, a montanha iludindo os meus olhos e os sons procurando-me e o meu pensamento voa, inclina-se na melodia cadenciada dos teus dedos e aqui e ali paras, deténs a tua tristeza como se ficasses incapaz de andar, de prosseguir para de seguida retomares sem tropeço o teu caminho. Mas agora é noite e neva lá fora, sinto o frio percorrer as arestas dos meus sonhos onde ela vive e eu a guardo e corro com a tua música na procura do tempo que se diluiu na escuridão quando eu a amava e também ela talvez me tenha amado. Também agora sinto soçobrar a fantasia, aquela onde vivi sobre as muralhas de altos castelos de vento, em cujas ameias estendia os braços e embrulhava a planície de encontro a mim como se fosse a ela que guardava com os seus olhos mágicos e o seu rosto calado, sereno e belo como a tua música. Não, não acredito em pessoas imprescindíveis. Tudo passa e todos somos substituídos. Parece até uma verdade imutável, mas de facto, quem te substituiu a ti, Ludwig, quem foi que construiu serenidades musicais como  esta que me embala nesta noite fria, nesta noite estrelada em que ela não está comigo e me faz lembrar que não a tenho e sentir que já a perdi? Não, Ludwig na verdade não mais alguém foi capaz de construir esta beleza de sons excepcionais, este Silêncio que me faz viver. Não há pessoas imprescindíveis, mas tu e ela não podem ser substituídos. Por isso te escuto nesta noite fria, triste e nevada e a lembro, a recordo com o seu olhar de encanto e a minha alma não se contenta com havê-la perdido.


Isso é tudo. Ao longe alguém canta. Ao longe. A minha alma não se contenta com havê-la perdido. 
Como para chega-la a mim o meu olhar procura-a. 
O meu coração procura-a, ela não está comigo.”

 

Lendo a poesia de Pablo Neruda e escutando o Silêncio de Beethoven

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