Mário Faria
Estou furioso. A crise não me tinha atingido em cheio, e eis que agora, me vão ao bolso, com uma enxurrada de impostos colossal : um autêntico confisco que abala os alicerces do nível de vida (relativamente) desafogado a que estava habituado, e que fora sustentado na reforma a que tenho direito, capitalizada pela via dos descontos (salariais e empresariais) sempre realizados, ao longo de mais de quarenta anos de trabalho, e apenas interrompido pelo cumprimento de mais de quatro anos de serviço militar obrigatório.
Se sempre estive solidário com os mais expostos a esta política de austeridade que atinge com extrema violência os mais fracos, não seria sério se não reconhecesse que a solidariedade é bonita e que a caridade fica bem, mas que essa proximidade é muito semelhante à que me fica quando estou perante as notícias trágicas da devastação provocada pelos efeitos de cataclismos naturais, da guerra ou da fome. Fico perturbado, mas fecha-se o jornal, apaga-se a TV, e o choque, provocado pelo terror do testemunho das palavras e das imagens, esfuma-se suavemente no limbo da memória. Os problemas pessoais e familiares, que exponencio desmesuradamente, toma toda a minha atenção, como se a maior parte deles não fossem triviais, face às terríveis desgraças alheias.
Vou no mesmo barco, mas ainda não viajo no porão. Apenas, estou muito mais perto. Sinto a ameaça, mas ainda não sou pobre. E, isso, ainda faz toda a diferença. Há muitos indignados, mas vamos reagir? resistindo e lutando ? esperando que os feitos “novos proletários” se rebelem e criem caminhos para uma alternativa ? ou vamos entrincheirar-nos na defesa do pouco que temos, como se fora um rico espólio a manter, ainda que se nos exija o silêncio ? Não sei. Só sei que as forças são poucas e os actores das alternativas políticas em presença, não seguem o mesmo trilho, nem apresentam soluções credíveis, ora porque foram responsáveis por parte do problema, ora porque não fazem (ou não os deixam ser) parte da solução.
Há quem refira que a “dificuldade de controlar a dívida pública (pode bem ser) um traço estrutural português, só resolvido em ditadura (César das Neves)”, há quem pense que “a ideia de que em democracia não se pode impor a austeridade é, em si mesma, uma ideia autoritária, uma ideia que menoriza a capacidade dos eleitores, mesmo rangendo os dentes, escolherem um caminho diferente do que nos encheu de défices e dívidas (José Manuel Fernandes)”, ou quem diga que “a posse é liberdade, dá liberdade, defende as pessoas da servidão. Se se transformam homens livres em proletários, que nada têm a perder a não ser as suas grilhetas, estes começam a portar-se como proletários (Pacheco Pereira)”, mas pela parte que me toca, e porque tenho mais dúvidas que certezas, o que me constrange é constatar que os imensos progressos científicos e tecnológicos produzirem um efeito contrário, ou seja: um modelo de desenvolvimento económico que apela, nestes tempos, por mais horas de trabalho, baixos salários, menos regulamentação, mais precariedade e menos apoios sociais, o que contrasta de forma escandalosa com a sociedade aberta e democrática prometida, de pleno emprego, pão para todos, de lazer e bem estar acrescidos. O que falhou está na génese do capitalismo globalizado, tóxico, sem rosto, e que um recente artigo Ricardo Pereira sintetiza assertivamente, quando escreve sobre o Prestige - que se afundou há dez anos ao largo da Galiza deixando um enorme rasto de poluição –, concluindo assim : “o julgamento do Prestige avança com quatro réus, três dos quais são tripulantes do navio. Num petroleiro com bandeira das Bahamas, de dono liberiano, certificado nos Estados Unidos, com um armador grego e fretado por uma empresa suíça, não espanta que seja mais fácil encontrar os culpados a bordo”. Um julgamento idêntico corre por cá : os detentores do poder estão a punir os pobres, os trabalhadores e a pequena burguesia, os únicos capazes de democratizar a economia, como se fossem os únicos culpados do endividamento. Para ultrapassar a crise, o governo alia-se, de forma servil, aos poderosos que se aguentam à tona e sempre em cima, acolitados por uma legião de burocratas, técnicos e pensadores, todos juntos pelas melhores razões, na manutenção (e aprofundamento) do status quo. A maioria dos portugueses vai a bordo de um barco que navega à vista e corre o sério risco de encalhar. Se a tragédia acontecer quem vai pagar ? Os de sempre, a não ser que o saibamos evitar, o que duvido. Até lá, a vida continua e a esperança também.
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